A morte de socrates, 1787, David Jacques-Louis
Em seu episódio final de Guerra nas Estrelas,
George Lucas não escapa da influência de uma versão ocidental do budismo, que
nos permitiria aceitar e participar da engrenagem dos mercados, desde que
mantendo uma distância interna.
Revelando finalmente, em A Revanche de Sith (episódio III da “primeira trilogia”), o momento
crucial de toda a saga de Guerra nas Estrelas1 (a
saber, a transformação do “amável” Anakin no
“malvado” Darth Vader), George Lucas estabeleceu um paralelo entre o indivíduo
e a política. Na escala do indivíduo, a explicação retoma uma espécie de
budismo pop. “Ele [Anakin] transforma-se
A explicação política ainda é mais reveladora:
“Como a República transformou-se em Império? (Questão paralela: como Anakin tornou-se Darth Vader?). Como uma democracia se
transforma em ditadura? Não é porque o Império tenha conquistado a República, é
por que o Império é a República4”. O Império nasce da
corrupção inerente à República. Conta Lucas que: “Um belo dia, a princesa Leia
e seus amigos acordaram dizendo uns aos outros: ‘Não é mais República, é
Império. Nós somos os malvados5”.
Existem conotações
contemporâneas de referência à Roma antiga nessa transformação de
Estados-nações em Império global ;
Da nação ao império
Erraríamos se neglicenciássemos
as conotações contemporâneas da referência à Roma antiga nessa transformação de
Estados-nações em Império global. Logo, é preciso situar a problemática de Guerra
nas Estrelas (a passagem da República ao Império) exatamente no contexto
descrito por Antonio Negri e Michael Hardt no livro Império6, e a
passagem do Estado-nação a um Império mundial.
As alusões políticas em Guerra nas Estrelas
são múltiplas e contraditórias. Elas conferem à série um poder “mítico”: mundo
livre contra o Império do mal; debate sobre o Estado-nação convocando as teses
de Pat Buchanan7 ou de Jean-Marie Le Pen; contradição
que leva pessoas da camada aristocrática (princesas, membros da Ordem elitista
dos Jedi) a defender a República “democrática” contra
o Império do Mal; e, finalmente, a tomada de consciência essencial de que “nós
somos os malvados”.
O Império do Mal não está em outro lugar, como
dizem esses filmes; seu aparecimento depende da maneira como nós, os ‘bons’, o
revertemos. A questão concerne à atual “guerra contra o terrorismo”: como ela
vai nos transformar? Um mito político não é uma narrativa dotada
de significação política determinada, é um conteúdo vazio no qual depositamos
muitas significações contraditórias. A Ameaça Fantasma, episódio I de Guerra
nas Estrelas, fornece um índice crucial: as características “crísticas” do jovem Anakin – sua
mãe sustenta que ele tenha nascido de uma “concepção imaculada”; a corrida que
ele ganha evoca a célebre corrida de bigas de Ben Hur, essa “história do Cristo”.
A posição budista é, em síntese, a da indiferença, enquanto o amor cristão é uma paixão que introduz hierarquia na relação entre os seres
Compaixão budista e amor cristão
O universo ideológico de Guerra nas Estrelas
remete ao universo pagão da Nova Era8. É lógico, portanto, que a figura central
de Mal faça eco à do Cristo. Na visão pagã, o aparecimento de Cristo é o
supremo escândalo. Na medida em que diabolos
(separar, dilacerar) é o contrário de symbolos
(reunir, unificar), o próprio Cristo se torna uma figura diabólica no sentido
de que ele traz “o gládio e não a paz” e perturba a unidade existente. Segundo
o evangelista Lucas, Jesus teria declarado: “Se alguém vier a mim e não
desprezar seu pai, sua mãe, sua esposa, seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e
até mesmo sua própria vida, ele não pode ser meu discípulo9.”
É preciso considerar que a posição cristã tem
natureza diferente da sabedoria pagã. O cristianismo dos primórdios considera o
ato mais elevado aquilo que a sabedoria pagã condena como fonte de mal, ou
seja, o gesto de separar, de dividir, ou de ligar-se a um elemento que
compromete o equilíbrio de todos.
Isso significa que seria necessário opor a
compaixão budista (ou taoísta10) ao amor cristão. A posição budista é, em
síntese, a da indiferença – estado no qual todas as paixões são reprimidas –,
enquanto que o amor cristão é uma paixão que visa introduzir uma hierarquia na
ordem da relação entre os seres. O amor é violência – e não apenas no sentido
do provérbio balcânico segundo o qual “se ele não me bate, ele não me ama”. A
violência do amor resulta em arrancar um ser de seu contexto.
O filme
paga por sua fidelidade a temas da Nova Era, não apenas por sua confusão
ideológica, mas também por sua mediocridade narrativa
Confusão ideológica
Em março de 2005, o cardeal Tarcisio
Bertone, em transmissão da Rádio Vaticano, fez uma
declaração condenando com firmeza o romance O Código Da Vinci, de Dan Brown,
acusado de ser baseado em mentiras e de propagar ensinamentos falsos (que Jesus
teria se casado com Maria Madalena e tido descendentes...) O ridículo da
atitude não nos pode fazer esquecer que o conteúdo de sua declaração está, no
fundo, correto: O Código Da Vinci inscreve o cristianismo na Nova Era sob a
rubrica do equilíbrio entre os princípios masculino e feminino.
Retornando à Vingança dos Siths,
o filme paga por sua fidelidade a esses temas da Nova Era, não apenas por sua
confusão ideológica, mas também por sua mediocridade narrativa: a transformação
de Anakin
Que paralelos fazer? No momento em que a
tecnologia e o capitalismo “europeus” triunfam em escala planetária, a herança
judaico-cristã, como “superestrutura ideológica” parece ameaçada pelo assalto
do pensamento “asiático” da Nova Era. O taoísmo é adequado para se tornar a
ideologia hegemônica do capitalismo mundial. Uma espécie de “budismo
ocidental”, se apresenta hoje como remédio contra o estresse da dinâmica
capitalista. Ele permitiria que nos desligássemos, que mantivéssemos a paz interior
e a serenidade, e funcionaria, na realidade, como um perfeito complemento
ideológico.
Em vez de
tentar se adaptar, é melhor renunciar e “deixar ir”, mantendo certa distância
interior em relação à aceleração do mundo tecnológico
Solução escapista
As pessoas não são mais capazes de se adaptarem
ao ritmo do progresso tecnológico e das transformações sociais que a
acompanham. As coisas andam muito rápido. O recurso ao taoísmo ou ao budismo
oferece uma saída. Em vez de tentar se adaptar ao ritmo das transformações, é
melhor renunciar e “deixar ir”, mantendo certa distância interior em relação a
essa aceleração, que não diz respeito ao núcleo mais profundo de nosso ser.
Estaríamos quase tentados a utilizar novamente,
agora, o clichê marxista de religião como “ópio do povo”, como suplemento
imaginário à miséria terrestre. O “budismo ocidental” aparece, dessa forma,
como a maneira mais eficaz de participar plenamente da dinâmica capitalista
mantendo uma aparência de saúde mental.
Se precisássemos encontrar um elo com o Episódio
III de Guerra nas Estrelas, ficaríamos tentados a propor o documentário de
Alexander Oey, Sandcastles.
Buddhism and Global Finance, (Castelos de Areia. O Budismo e as Finanças
Mundiais), indicador maravilhosamente ambíguo da dificuldade de nossa situação
ideológica atual. Mistura comentários do economista Arnoud
Boot, da socióloga Saskia Sassen
e do professor budista tibetano Dzongzar Khyentse Rinpoche.
Saskia
Sassen e Arnoud Boot
discutem sobre o alcance, o poder e os efeitos do sistema financeiro mundial.
Os mercados de capitais podem, em poucas horas, fazer subir ou abaixar o valor
das sociedades e de economias inteiras. Khyentse Rinpoche os enfrenta com considerações sobre a natureza da
percepção humana: “Libertai-vos de suas amarras ao que não passa de uma
percepção e não existe na realidade”, ele declara. Por outro lado, Saskia Sassen afirma: “O sistema
financeiro mundial é essencialmente um conjunto de movimentos contínuos.
Desaparece e reaparece”.
Que
melhor prova do caráter não substancial da realidade do que uma gigantesca
fortuna que pode se reduzir a nada em poucas horas?
Exuberância ilusória
Na visão do budista, a exuberância da riqueza
financeira mundial é ilusória, apartada da realidade objetiva: o sofrimento
humano engendrado pelas transações operadas nas salas dos mercados e conselhos
administrativos invisíveis para a maioria de nós. Que melhor prova do caráter
não substancial da realidade do que uma gigantesca fortuna que pode se reduzir
a nada em poucas horas? Por que deplorar que as especulações sobre os mercados
sejam “apartadas da realidade objetiva” quando o princípio fundamental da
ontologia budista enuncia que não há “realidade objetiva”?
Esse documentário fornece, assim, a chave da A vingança de Sith. A lição crítica a aprender é que nós não devemos nos engajar de corpo e alma no jogo capitalista, mas que podemos fazê-lo... mantendo uma distância interna. Pois o capitalismo nos põe diante do fato de que a causa de nossa sujeição não é a realidade objetiva enquanto tal (que não existe), mas nosso desejo, nossa avidez pelas coisas materiais e o apego excessivo que depositamos nelas. Por conseguinte, o que nos resta a fazer é renunciar ao nosso desejo para adotar uma atitude de paz interior. Não é de surpreender que um tal budismo-taoísmo possa funcionar como complemento ideológico da globalização liberal: ele nos permite participar do esquema mantendo uma distância interna... Capitalistas, sim, mas desapegados, zen...
Notas:
1 -
Essa epopéia cinematográfica de ficção científica
compreende seis filmes, divididos em duas trilogias. A primeira trilogia: A
Ameaça Fantasma (1999), O Ataque dos Clones (2002) e A Vingança de Sith ( 2005). A segunda trilogia: A Guerra nas Estrelas,
Uma Nova Esperança (1977), O Império Contra-ataca (1980) e O Retorno de Jedi (1983).
2 -
Citado em “Dark Victory”,
Time Magazine, 22 de abril 2002.
3 -
A Ordem dos Jedi, em Guerra nas Estrelas, é uma
reunião de indivíduos que têm em comum a crença e o respeito na Força, uma
espécie de poder extra-sensorial que permite compreender e modificar o
ambiente. Os inimigos jurados dos Jedi são os Sith.
4 -
Idem.
5 -
idem
6 -
Editado no Brasil pela Editora Record, 2001.
7 -
Patrick J. Buchanan, editorialista católico ultra-conservador,
candidato à presidencia dos Estados Unidos em 2000.
8 -
Síntese pseudofilosófica que surgiu na Califórnia,
nos anos 1980, e que tenta responder às questões sobre a vida evocando
confusamente anjos, extraterrestres, esoterismo, simbolismo, sabedorias
orientais, vidas passadas, experiências psíquicas etc.
9 -
Lucas, 14,26.
10 -
Sistema de pensamento religioso e filosófico, o taoísmo constitui um
sincretismo que se desenvolveu na China no século VI A.C. Tornou-se, como
budismo, uma das duas grandes religiões chinesas. O taoísmo mostra-se mais
preocupado com o indivíduo, com sua consciência e sua vida espiritual, até
especulativa, na busca de uma harmonia com a natureza e com o universo.
1.- Existe traducción española: Eric J. Hobsbawm, Entrevista sobre el siglo XXI, al cuidado de Antonio Polito. Barcelona, Crítica, 2004.
Traducido por Felisa
Sastre y revisado por Esther Carrera