Capitalistas, sim, mas zen...*

 

A morte de socrates, 1787, David Jacques-Louis

Slavoj Zizek**

Em seu episódio final de Guerra nas Estrelas, George Lucas não escapa da influência de uma versão ocidental do budismo, que nos permitiria aceitar e participar da engrenagem dos mercados, desde que mantendo uma distância interna.

Revelando finalmente, em A Revanche de Sith (episódio III da “primeira trilogia”), o momento crucial de toda a saga de Guerra nas Estrelas1 (a saber, a transformação do “amável” Anakin no “malvado” Darth Vader), George Lucas estabeleceu um paralelo entre o indivíduo e a política. Na escala do indivíduo, a explicação retoma uma espécie de budismo pop. “Ele [Anakin] transforma-se em Darth Vader porque se apega às coisas”, explica Lucas. “Ele não consegue separar-se de sua mãe. Ele não consegue se separar de sua namoradinha. Ele não consegue renunciar aos objetos. Esse apelo o torna ávido. E quando você é ávido, você está no caminho do lado obscuro, porque tem medo de perder o que possui2.” A Ordem dos Jedi3 aparece, em oposição a isso, como uma comunidade masculina fechada, proibindo qualquer ataque, como se fora uma nova versão da comunidade do Graal celebrada pelo compositor Richard Wagner em Parsifal.

A explicação política ainda é mais reveladora: “Como a República transformou-se em Império? (Questão paralela: como Anakin tornou-se Darth Vader?). Como uma democracia se transforma em ditadura? Não é porque o Império tenha conquistado a República, é por que o Império é a República4”. O Império nasce da corrupção inerente à República. Conta Lucas que: “Um belo dia, a princesa Leia e seus amigos acordaram dizendo uns aos outros: ‘Não é mais República, é Império. Nós somos os malvados5”.

 

Existem conotações contemporâneas de referência à Roma antiga nessa transformação de Estados-nações em Império global ;

 

Da nação ao império

Erraríamos se neglicenciássemos as conotações contemporâneas da referência à Roma antiga nessa transformação de Estados-nações em Império global. Logo, é preciso situar a problemática de Guerra nas Estrelas (a passagem da República ao Império) exatamente no contexto descrito por Antonio Negri e Michael Hardt no livro Império6, e a passagem do Estado-nação a um Império mundial.

As alusões políticas em Guerra nas Estrelas são múltiplas e contraditórias. Elas conferem à série um poder “mítico”: mundo livre contra o Império do mal; debate sobre o Estado-nação convocando as teses de Pat Buchanan7 ou de Jean-Marie Le Pen; contradição que leva pessoas da camada aristocrática (princesas, membros da Ordem elitista dos Jedi) a defender a República “democrática” contra o Império do Mal; e, finalmente, a tomada de consciência essencial de que “nós somos os malvados”.

O Império do Mal não está em outro lugar, como dizem esses filmes; seu aparecimento depende da maneira como nós, os ‘bons’, o revertemos. A questão concerne à atual “guerra contra o terrorismo”: como ela vai nos transformar? Um mito político não é uma narrativa dotada de significação política determinada, é um conteúdo vazio no qual depositamos muitas significações contraditórias. A Ameaça Fantasma, episódio I de Guerra nas Estrelas, fornece um índice crucial: as características “crísticas” do jovem Anakin – sua mãe sustenta que ele tenha nascido de uma “concepção imaculada”; a corrida que ele ganha evoca a célebre corrida de bigas de Ben Hur, essa “história do Cristo”.

 

A posição budista é, em síntese, a da indiferença, enquanto o amor cristão é uma paixão que introduz hierarquia na relação entre os seres

 

Compaixão budista e amor cristão

O universo ideológico de Guerra nas Estrelas remete ao universo pagão da Nova Era8. É lógico, portanto, que a figura central de Mal faça eco à do Cristo. Na visão pagã, o aparecimento de Cristo é o supremo escândalo. Na medida em que diabolos (separar, dilacerar) é o contrário de symbolos (reunir, unificar), o próprio Cristo se torna uma figura diabólica no sentido de que ele traz “o gládio e não a paz” e perturba a unidade existente. Segundo o evangelista Lucas, Jesus teria declarado: “Se alguém vier a mim e não desprezar seu pai, sua mãe, sua esposa, seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até mesmo sua própria vida, ele não pode ser meu discípulo9.”

É preciso considerar que a posição cristã tem natureza diferente da sabedoria pagã. O cristianismo dos primórdios considera o ato mais elevado aquilo que a sabedoria pagã condena como fonte de mal, ou seja, o gesto de separar, de dividir, ou de ligar-se a um elemento que compromete o equilíbrio de todos.

Isso significa que seria necessário opor a compaixão budista (ou taoísta10) ao amor cristão. A posição budista é, em síntese, a da indiferença – estado no qual todas as paixões são reprimidas –, enquanto que o amor cristão é uma paixão que visa introduzir uma hierarquia na ordem da relação entre os seres. O amor é violência – e não apenas no sentido do provérbio balcânico segundo o qual “se ele não me bate, ele não me ama”. A violência do amor resulta em arrancar um ser de seu contexto.

 

O filme paga por sua fidelidade a temas da Nova Era, não apenas por sua confusão ideológica, mas também por sua mediocridade narrativa

 

Confusão ideológica

Em março de 2005, o cardeal Tarcisio Bertone, em transmissão da Rádio Vaticano, fez uma declaração condenando com firmeza o romance O Código Da Vinci, de Dan Brown, acusado de ser baseado em mentiras e de propagar ensinamentos falsos (que Jesus teria se casado com Maria Madalena e tido descendentes...) O ridículo da atitude não nos pode fazer esquecer que o conteúdo de sua declaração está, no fundo, correto: O Código Da Vinci inscreve o cristianismo na Nova Era sob a rubrica do equilíbrio entre os princípios masculino e feminino.

Retornando à Vingança dos Siths, o filme paga por sua fidelidade a esses temas da Nova Era, não apenas por sua confusão ideológica, mas também por sua mediocridade narrativa: a transformação de Anakin em Darth Vader, momento capital de toda a saga, não atinge a grandeza trágica conveniente. Ao invés de se concentrar no orgulho de Anakin visto como desejo irresistível de intervir, de fazer o bem, de ir até o final pelos que ama (Amídala) e, em conseqüência, perder-se no lado obscuro, Anakin é apresentado simplesmente como um combatente indeciso, que escorrega para o mal ao ceder a tentação do poder e ao cair na dependência de um mal imperador. Dito de outra forma, George Lucas não tem força para estabelecer realmente os paralelos República – Império e Anakin-Darth Vader. É a obsessão de Anakin pelo mal que o transforma em monstro.

Que paralelos fazer? No momento em que a tecnologia e o capitalismo “europeus” triunfam em escala planetária, a herança judaico-cristã, como “superestrutura ideológica” parece ameaçada pelo assalto do pensamento “asiático” da Nova Era. O taoísmo é adequado para se tornar a ideologia hegemônica do capitalismo mundial. Uma espécie de “budismo ocidental”, se apresenta hoje como remédio contra o estresse da dinâmica capitalista. Ele permitiria que nos desligássemos, que mantivéssemos a paz interior e a serenidade, e funcionaria, na realidade, como um perfeito complemento ideológico.

 

Em vez de tentar se adaptar, é melhor renunciar e “deixar ir”, mantendo certa distância interior em relação à aceleração do mundo tecnológico

 

Solução escapista

As pessoas não são mais capazes de se adaptarem ao ritmo do progresso tecnológico e das transformações sociais que a acompanham. As coisas andam muito rápido. O recurso ao taoísmo ou ao budismo oferece uma saída. Em vez de tentar se adaptar ao ritmo das transformações, é melhor renunciar e “deixar ir”, mantendo certa distância interior em relação a essa aceleração, que não diz respeito ao núcleo mais profundo de nosso ser.

Estaríamos quase tentados a utilizar novamente, agora, o clichê marxista de religião como “ópio do povo”, como suplemento imaginário à miséria terrestre. O “budismo ocidental” aparece, dessa forma, como a maneira mais eficaz de participar plenamente da dinâmica capitalista mantendo uma aparência de saúde mental.

Se precisássemos encontrar um elo com o Episódio III de Guerra nas Estrelas, ficaríamos tentados a propor o documentário de Alexander Oey, Sandcastles. Buddhism and Global Finance, (Castelos de Areia. O Budismo e as Finanças Mundiais), indicador maravilhosamente ambíguo da dificuldade de nossa situação ideológica atual. Mistura comentários do economista Arnoud Boot, da socióloga Saskia Sassen e do professor budista tibetano Dzongzar Khyentse Rinpoche.

Saskia Sassen e Arnoud Boot discutem sobre o alcance, o poder e os efeitos do sistema financeiro mundial. Os mercados de capitais podem, em poucas horas, fazer subir ou abaixar o valor das sociedades e de economias inteiras. Khyentse Rinpoche os enfrenta com considerações sobre a natureza da percepção humana: “Libertai-vos de suas amarras ao que não passa de uma percepção e não existe na realidade”, ele declara. Por outro lado, Saskia Sassen afirma: “O sistema financeiro mundial é essencialmente um conjunto de movimentos contínuos. Desaparece e reaparece”.

 

Que melhor prova do caráter não substancial da realidade do que uma gigantesca fortuna que pode se reduzir a nada em poucas horas?

 

Exuberância ilusória

Na visão do budista, a exuberância da riqueza financeira mundial é ilusória, apartada da realidade objetiva: o sofrimento humano engendrado pelas transações operadas nas salas dos mercados e conselhos administrativos invisíveis para a maioria de nós. Que melhor prova do caráter não substancial da realidade do que uma gigantesca fortuna que pode se reduzir a nada em poucas horas? Por que deplorar que as especulações sobre os mercados sejam “apartadas da realidade objetiva” quando o princípio fundamental da ontologia budista enuncia que não há “realidade objetiva”?

Esse documentário fornece, assim, a chave da A vingança de Sith. A lição crítica a aprender é que nós não devemos nos engajar de corpo e alma no jogo capitalista, mas que podemos fazê-lo... mantendo uma distância interna. Pois o capitalismo nos põe diante do fato de que a causa de nossa sujeição não é a realidade objetiva enquanto tal (que não existe), mas nosso desejo, nossa avidez pelas coisas materiais e o apego excessivo que depositamos nelas. Por conseguinte, o que nos resta a fazer é renunciar ao nosso desejo para adotar uma atitude de paz interior. Não é de surpreender que um tal budismo-taoísmo possa funcionar como complemento ideológico da globalização liberal: ele nos permite participar do esquema mantendo uma distância interna... Capitalistas, sim, mas desapegados, zen...

 

Notas:

1 - Essa epopéia cinematográfica de ficção científica compreende seis filmes, divididos em duas trilogias. A primeira trilogia: A Ameaça Fantasma (1999), O Ataque dos Clones (2002) e A Vingança de Sith ( 2005). A segunda trilogia: A Guerra nas Estrelas, Uma Nova Esperança (1977), O Império Contra-ataca (1980) e O Retorno de Jedi (1983).

2 - Citado em “Dark Victory”, Time Magazine, 22 de abril 2002.

3 - A Ordem dos Jedi, em Guerra nas Estrelas, é uma reunião de indivíduos que têm em comum a crença e o respeito na Força, uma espécie de poder extra-sensorial que permite compreender e modificar o ambiente. Os inimigos jurados dos Jedi são os Sith.

4 - Idem.

5 - idem

6 - Editado no Brasil pela Editora Record, 2001.

7 - Patrick J. Buchanan, editorialista católico ultra-conservador, candidato à presidencia dos Estados Unidos em 2000.

8 - Síntese pseudofilosófica que surgiu na Califórnia, nos anos 1980, e que tenta responder às questões sobre a vida evocando confusamente anjos, extraterrestres, esoterismo, simbolismo, sabedorias orientais, vidas passadas, experiências psíquicas etc.

9 - Lucas, 14,26.

10 - Sistema de pensamento religioso e filosófico, o taoísmo constitui um sincretismo que se desenvolveu na China no século VI A.C. Tornou-se, como budismo, uma das duas grandes religiões chinesas. O taoísmo mostra-se mais preocupado com o indivíduo, com sua consciência e sua vida espiritual, até especulativa, na busca de uma harmonia com a natureza e com o universo.

1.- Existe traducción española: Eric J. Hobsbawm, Entrevista sobre el siglo XXI, al cuidado de Antonio Polito. Barcelona, Crítica, 2004.

Traducido por Felisa Sastre y revisado por Esther Carrera


*Transcrito de Le Monde Diplomatique, edição brasileira, maio de 2005, ano VI, nº 64.

**Filósofo, pesquisador na Universidade de Ljubljana (Eslovênia). (Tradução de Teresa Van Acker)

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