Gênese e objeto da Geografia: passado e presente*

 

 

Armen MAMIGONIAN

 

 

 

A geografia responde, como outros conhecimentos, à necessidade de descrição e explicação do mundo: da natureza que nos envolve e cujas leis de funcionamento nos interessam, bem como da sociedade, cujas leis, mais complexas e mutáveis, igualmente fazem parte do interesse dos homens. Assim, os conhecimentos geográficos aparecem timidamente desde os tempos primitivos da humanidade (as tábuas de navegação dos polinésios, conforme o exemplo de De Martonne). Continuaram e se sofisticaram com as primeiras civilizações da China, Mesopotâmia, Grécia, etc. Mas foi entre os gregos que alcançou as primeiras conotações de ciência.

Coincidentemente foi nos séculos V e IV a.C. que ela alcançou entre os gregos os primeiros sinais de maturidade, com Heródoto e Tucídides pais ao mesmo tempo da geografia e da história. Igualmente nesta época a cultura grega alcançou o máximo de sua maturidade na Filosofia (Sócrates), no teatro (Sófocles), entre outras áreas de conhecimento. Provavelmente geografia, história, filosofia, teatro, etc, amadurecidos na mesma conjuntura, responderam a perguntas, indagações e dúvidas que diziam respeito às mudanças radicais sofridas pela civilização grega. Demóstenes lembra que antigamente se falava da vitória dos atenienses e Maratona ou em Salamina, enquanto que depois era a tal ou qual general que cabia o mérito de ter vencido o inimigo; a demissão política do povo ateniense, no dizer de C. Moisés (As instituições gregas) foi acompanhada de sua predileção pelos chefes militares gloriosos, que a divindade indicava através da vitória.

Tratou-se de uma prolongada e conflituosa substituição do modo de produção antigo (Marx), isto é, da pequena produção mercantil sólida, baseada na separação de camponeses e artesãos livres e prósperos, por uma paulatina diferenciação social que conduziu ao empobrecimento de parte dos camponeses, com resistências na defesa da reconstituição de um certo igualitarismo (reforma de Sólon, entre outros), e a emersão de uma aristocracia rural, que se baseava crescentemente no trabalho escravo. Assim sendo, a primitiva vitalidade dos tempos homéricos foi sendo substituída por um crescente prestígio da guerra e desprezo pelos ofícios artesanais, que chamou atenção de Heródoto, ao comparar gregos e egípcios.

A passagem conflituosa do igualitarismo ligado à comunidade primitiva e posteriormente à pequena produção mercantil, base material da democracia grega a um sistema crescentemente escravista e desigual está na raiz da mudança da sociedade grega. A altura dos séculos V e IV a.C., a intelectualidade se pergunta o que havia mudado e por que os gregos daquela época não eram mais os gregos de antigamente. Para tentar responder a estas dúvidas surgem várias tentativas: 1) a história procurou o caminho no esforço de decifração do passado; nas instituições primitivas, nos acontecimentos bélicos, que haviam ocorrido; 2) a geografia realizou seu esforço de cotejar os gregos daquela conjuntura com os chamados, bárbaros, tendo Heródoto muitas vezes realizado nos seus escritos comparações elucidativas e participado ativamente de viagens ao mundo exterior conhecido de então; 3) a filosofia de Sócrates, diante dos primeiros problemas psicológicos nas relações sociais e individuais alienadas, procura o caminho do “conheça-te a ti mesmo”; 4) o teatro, como por exemplo, na Antígona (Sófocles), coloca as questões das leis antigas e novas que dilaceravam o destino e a felicidade humana.

Nota-se que tanto geografia, história, filosofia e teatro tendiam a ter visões globais, abrangentes, que procuravam descrever e explicar a realidade, sem estabelecer limites rígidos para o seu pensar. O objeto da geografia, desde os seus inícios gregos até hoje, tem girado em torno de uma visão holística que abarque o natural e o social, mesmo que suas leis não sejam estritamente as mesmas e suas relações sejam mutáveis e de difícil apreensão.

A geografia, além da gênese grega, teve uma segunda gênese, entre os alemães do início do século XIX. Ao longo dos séculos XVI-XVIII várias ciências foram se setorializando em relação ao conjunto dos conhecimentos humanos, como a política (Maquiavel), a economia (Smith), etc, mas a geografia que começa a ser repensada por Kant e Hegel é, como a grega, globalizadora, continuando a abranger campos que foram se setorializando (águas, clima, solo, economia, etc) anteriormente. Seu mérito, como o da história, foi de se manter um cruzamento de conhecimentos que se iam especializando aceleradamente. Por isto mesmo o conhecimento geográfico do delta do Tonquim foi tão importante estrategicamente para americanos e vietnamitas.

Assim sendo, as contribuições gregas como as germânicas (Humboldt e Ritter) e as posteriores contribuições da escola geográfica francesa (La Blache), continuam de viva utilidade hoje em dia, a medida que a geografia encontra mais intensamente o marxismo após a derrota americana no Vietnã. Tanto geografia como marxismo tem a tendência à postura holística, hoje cada vez mais indispensável às tentativas de decifrar a complexidade do mundo. Cabe aos geógrafos de hoje retomar a tradição que a “École des Annales” (L. Febvre e M. Bloch) herdou de Vidal de La Blache e que tanto vitalizou a história; isto é a procura incessante da interdisciplinaridade, que na década de 40 aparecia nitidamente em L. Febvre (Géographie Linguistique), G. Le Brás (La géographie religieuse), F.Braudel (Une géographie de l’individu biologique?), H. Baulig (M. Bloch, géographie), etc. Mas enquanto a ótica da interdisciplinaridade dos geógrafos, devido a composição social de suas lideranças, acabou aprisionada pela rigidez da busca das permanências, o caráter transitório dos acontecimentos, questionando a própria noção de região, pois esta dependia, na verdade, do problema e da época que se tinha em mente, como assinalou já em 1913 M. Bloch: “por que devemos esperar que o jurista interessado no feudalismo, o economista que está estudando a evolução da propriedade no interior do país nos tempos modernos, e o filólogo que trabalha os dialetos populares tenham todos que respeitar fronteiras precisamente idênticas?” (P. Burke: A escola dos Annales: 1929-1989).

E não se tratava de uma interdisciplinaridade fria, mas ativa. M. Bloch julgava necessário que o historiador regional combinasse as habilidades de um arqueólogo, de um paleógrafo, de um historiador das leis e assim por diante.

Além da interdisciplinaridade, havia da parte da geografia e posteriormente da história a preocupação pela totalidade, pela realização de estudos globais, que distinguissem vários níveis da “construção” estudada, desde os alicerces e do porão até o sótão, o que significava um primeiro nível de forte participação dos fenômenos naturais na via humana (de mudanças lentas), um outro nível de atuação das estruturas econômico-sociais e um nível mais elevado dos acontecimentos políticos e eventos em geral. Mas aqui novamente uma diferença importante: enquanto na geografia a preocupação por causalidade freqüentemente se prendeu à rigidez do esquema possibilismo-determinismo nas relações homem-meio, entre os historiadores, muitas vezes até espontaneamente ou por influências marxistas, foi-se percebendo a existência de múltiplas determinações, desde aquelas naturais até as econômico-sociais, políticas, culturais, etc, como aparece em F. Braudel, por exemplo.

A renovação por que passa a geografia atualmente requer uma radicalização teórica, no sentido de recuperar a interdisciplinaridade e a visão de totalidade propiciadas pelos paradigmas de formação sócio-espacial e de geo-sistema. Isto quer dizer que quem faz geografia humana deve assumir funções não somente de geógrafo estrito-senso, mas de historiador, economista, sociólogo, etc.

 


 * Fonte: MAMIGONIAN Armen. Geosul nº 28: Gênese e objeto da Geografia: passado e presente. Florianópolis: Editora da UFSC, 1999, p.167-170.

 

 

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