A ciência geográfica e a construção do Brasil*

 

 

 

Manoel Fernandes de Sousa Neto

Professor do Departamento de Geografia da USP

 

 

 

Resumo: Este artigo discute a relação entre a ciência geográfica e a construção material e simbólica do mundo moderno, buscando elementos para a compreensão do Brasil e da Geografia produzida nesses últimos cinco séculos entre nós.

Palavras-chave: Geografia; território; ciência; moderno.

 

O título deste texto é produto de uma série de escolhas. Escolhi falar da ciência geográfica não apenas pela obrigação do ofício, mas porque a Geografia foi a responsável pela elaboração de diversas imagens do mundo, ao mesmo tempo em que se utilizou dessa ciência para a construção material desse mesmo mundo.

Quando estamos a falar na construção do Brasil, estamos falando de como se costurou, ao resto dos mapas anteriores, aquilo que se passou a chamar de “novo mundo”, na realidade de como se realizou uma violenta marcha para Oeste. Essa escolha é para propor que o Brasil não foi apenas inventado simbolicamente, mas materialmente construído, através de processos militares, políticos, econômicos e que certos fatos dessa construção não podem cair na vala comum da história, assim como se tudo que aí está fosse produto de invenções e a qualquer um fosse possível, mediante análises de discurso, inventar o seu próprio Brasil.

Por fim, a escolha fundamental está em tentar desconstruir certas imagens, que se tornaram naturais, edificadas em torno desse país e da ciência geográfica, para que possamos compreender os limites do que temos hoje em nível de País e de ciência.

 

Segundo Lúcia Lippi Oliveira

“o Novo Mundo e o Brasil tiveram no domínio do espaço geográfico o processo básico que acompanhou a formação da sociedade e do Estado. A ausência de um passado histórico remoto, exemplificada na ausência de catedrais góticas, produziu a busca de raízes em passados mitológicos ou em traços culturais primeiros do português, do índio e do negro. Entretanto, estas construções simbólicas têm produzido mais a consciência das distinções do que a da integração. A consciência do espaço, da territorialidade, em contrapartida, forneceu as bases da integração necessária à formulação de um projeto de nação.” (1998, p.196).

 

As novas terras adicionadas ao velho mundo tiveram também um papel decisivo na conformação da ciência geográfica moderna, na medida em que o seu conhecimento implicava o trabalho de cronistas que, a serviço dos reis, eram os responsáveis por relatar o que havia nas possessões territoriais conquistadas. Aos cronistas cabia, na realidade, inventariar a natureza com fins à sua ulterior exploração. Era com base nessas informações que as decisões geopolíticas eram tomadas. Por sua vez, tais decisões imprimiam ao trabalho dos geógrafos–cartógrafos um importante papel na delimitação de fronteiras, no arranjo dos limites naturais, nos desenhos do território e, logo, nas concepções que se passaria a ter sobre eles.

Tal era o trabalho dos cronistas, que muitas das informações contidas nas crônicas continuavam sem ser cartografadas e muitos dos mapas eram, como ainda hoje o são, de uso restrito do Estado. Por isso, os mapas são armas no processo de dominação territorial e, ao mesmo tempo, representam construções ideológicas altamente eficientes, porque, para muitos, os mapas parecem sempre representar com fidelidade o real. Na realidade, os mapas são formas de ler o mundo, mas não são o mundo.

Os cronistas, nesse caso, foram, em muito, responsáveis pela construção dessa anexação do chamado novo ao velho mundo, e, por essa mesma razão, precederam a Geografia Moderna e seus métodos de descrição, classificação e investigação (Capel, 1999). Porque a Geografia Moderna só apareceria com o advento de um planeta de todo cartografado. E, em outras palavras, até que o mundo fosse tal como nós o conhecemos hoje, não havia ciência geográfica moderna. Isso implica dizer que essa Geografia se constituiu junto com o mundo, na medida em que este ia sendo milimetricamente recortado, por latitudes e longitudes, limites fronteiriços e repartições históricas que eram veiculadas como naturais.

Por isso a imagem da maioria dos mortais com relação à Geografia continua sendo a de que ela tem como papel fundamental descrever a natureza ou matematizar cartograficamente o mundo. Poderíamos dizer que à medida que a Geografia teve como papel descrever a natureza dos diversos lugares do mundo, o modo de vida das populações e seus recortes territoriais naturalizados, ela própria foi sendo elaborada enquanto ciência.

Se aceitamos “a história da ciência geográfica... como a história do imago mundi da própria modernidade” (Gomes, 1996, p.28), isso implica aceitar que as imagens do mundo na mentalidade da humanidade foram transformadas pelas representações criadas por essa ciência – a Geografia –, sendo que sua história se confundiria com diversas imagens de mundo que existiram ao longo da história da humanidade, de suas culturas e espaços geográficos.

 

Para Paulo César Costa Gomes,

“o professor de geografia se aproxima da imagem do aedo grego que, através de seus cantos, reatualizava a ordem do mundo através das aventuras de deuses e heróis no interior de longas cosmogonias. Assim como o geógrafo atual, estes poetas descreviam a imagem do mundo e forneciam, ao fazê-lo, uma explicação da multiplicidade, uma cosmovisão. Trata-se de uma dimensão freqüentemente negligenciada do saber geográfico como produtor e difusor de uma cosmovisão moderna.” (1996, p.10).

 

Não por acaso, primeiro os cronistas dos reis e depois os viajantes, naturalistas e exploradores foram, de algum modo, os cosmógrafos desse mundo que ocidentalmente se despia aos olhos europeus, reatualizando o mundo, para que os outros o vissem tal como eles o haviam visto e relatado.

Essa forma de ver as coisas serve também para o Brasil, construído como território a partir das muitas leituras que os diversos cronistas, viajantes e exploradores fizeram dele. E de como essas leituras serviram, simultaneamente, para justificar a construção do território pelas elites nacionais.

Uma dessas leituras está na base do processo que justificou a exploração do território para além dos limites estabelecidos pelo Tratado de Tordesilhas. E que leitura foi essa? A que fez Portugal, durante os três primeiros séculos de colonização, apoiar suas ações expansionistas no mito da ilha Brasil (Magnoli, 1997, p.47).

O mito dizia haver na porção mais ocidental do território um lago, lago esse onde nasciam dois grandes rios que, correndo para o mar em direções diferentes, acabavam por conformar uma vasta porção de terras cercada de água por todos os lados. Inicialmente pensaram ser esses rios o São Francisco e o Tocantins, mas a expansão territorial exigiu também um redimensionamento dos tamanhos da ilha e os novos rios passaram a ser o Prata e o Amazonas. (Ibid., p.46).

 

Segundo Demétrio Magnoli,

“a força da noção da Ilha-Brasil derivaria, precisamente, da subversão do horizonte histórico e diplomático e da sua substituição por um ordenamento ancestral. No lugar dos tratados entre as coroas – e, em particular, do acerto de Tordesilhas -, ela invocava uma verdade prévia, anterior à história. Por essa via, introduzia-se a lógica da descoberta: a descoberta de uma terra pré-existente, de um lugar de contornos definidos, de uma entidade indivisível. O Brasil erguia-se como realidade geográfica anterior à colonização, como herança recebida pelos portugueses. Ao invés de conquista e exploração colonial, dádiva e destino. Nas palavras do padre Simão de Vasconcelos, cronista da Companhia de Jesus, o Amazonas e o Prata eram ‘duas chaves de prata que fecham a terra do Brasil’ ou ‘dois gigantes que a defendem e a demarcam entre nós e Castela’ (apud Cortesão, 1956, p.137).” (1997, p.47).

 

Não por acaso, em seu livro Martin Cererê, na parte referente às “Imagens Brasílicas” o Poeta Cassiano Ricardo faz menção ao mito da ilha na poesia

Ladainha I

“Por se tratar de uma ilha deram-lhe o nome

de ilha de Vera Cruz.

Ilha cheia de graça

Ilha cheia de pássaros

Ilha cheia de luz.

 

Ilha verde onde havia

mulheres morenas e nuas

anhangás a sonhar com histórias de luas

e cantos bárbaros de pajés em poracés batendo os pés.

 

Depois mudaram-lhe o nome

pra terra de Santa Cruz.

Terra cheia de graça

Terra cheia de pássaros

Terra cheia de luz.

 

A grande Terra girassol onde havia guerreiros de

tanga e onças ruivas deitadas à sombra das

árvores mosqueadas de sol.

 

Mas como houvesse, em abundância,

certa madeira cor de sangue cor de brasa

e como o fogo da manhã selvagem

fosse um brasido no carvão noturno da paisagem,

 

e como a Terra fosse de árvores vermelhas

e se houvesse mostrado assaz gentil,

deram-lhe o nome de Brasil

 

Brasil cheio de graça

Brasil cheio de pássaros

Brasil cheio de luz.

 

A obra poética Martin Cererê, de Cassiano Ricardo, nos interessa pelo fato de imbricar imagens míticas diversas que vão desde a Ilha que dormitava selvagemente, até a sua transformação em Brasil pelas mãos daqueles que foram responsáveis pela interiorização do território, no caso, os Bandeirantes paulistas, os Gigantes do “Sem-Fim”. Nesse mesmo livro há o mito do paraíso selvagem e de sua heróica ocupação pacífica.

E foi pelas Bandeiras, não somente as paulistas, durante os séculos XVI e XVII, que o território foi sendo invadido no sentido oeste. Segundo Demétrio Magnoli,

“[...] a primeira bandeira digna dessa denominação – foi a expedição de Gabriel Soares de Sousa, que partiu da Bahia em 1590 em busca do Dourado e das riquezas incomensuráveis que a razão medieval prometia. [...] Depois, o bandeirismo chamado ‘espontâneo’, originado de São Paulo, concentrou suas expedições em áreas mais distantes, para o interior, ao longo dos eixos fluviais alternativos do Paraná e Paraguai ou dos afluentes meridionais do Amazonas ” (1997, p.56).

 

Para que esse processo ocorresse, foram primordiais a existência dos mitos naturais fundadores, a existência de vias fluviais que permitissem a execução de diversas rotas ocidentais ao Norte e ao Sul e, além da violência armada, a violência da catequese Jesuítica que gramaticalizou o Tupi e disseminou o mito da existência de uma única língua no antigo território ocupado por diversas nações e línguas.

Por essas operações, que vão desde a invasão de vastas áreas a oeste, até o assassinato, expulsão ou conversão dos indígenas, somadas ao conhecimento e controle adquiridos por intermédio das cartas geográficas elaboradas por padres e militares a serviço da Coroa Portuguesa, é que Alexandre de Gusmão reclamará, com sucesso, essas possessões para Portugal.

Portanto, em 1750, sob os auspícios de Gusmão, exímio conhecedor da Geografia da colônia, o argumento utilizado é o do uso da posse territorial em substituição às trezentas e setenta léguas a leste do meridiano estipulado no Tratado de Tordesilhas.

 

“O Tratado de [Madri], como queria Gusmão, assinalou o abandono diplomático do Meridiano das Tordesilhas. O lugar da linha ancestral na delimitação recíproca das soberanias foi preenchido então por um conceito oriundo do direito civil romano: o uti possidetis (interdito possessório: a posse legitimada e justificada por uma circunstância de realidade, pela ocupação efetiva). Em Madri, Portugal cedeu à Espanha a Colônia de Sacramento e reconheceu-lhe a posse das Filipinas, em troca da formalização da soberania lusa sobre os Sete Povos das Missões e as margens orientais dos rios Paraná, Paraguai, Guaporé e Madeira.” (Magnoli, 1997, p.74).

 

Com Gusmão concretizava-se territorialmente o que havia nascido como mito. A Ilha-Brasil agora era, de fato, transformada, pelo uso da força, das idéias e da diplomacia, em um único corpo.

Corpo ainda não de todo conformado nos oitocentos e, logo, ainda em expansão, mas já como expressão mítica de um todo indiviso, gigante pela própria natureza e com um destino manifesto de ser uma nação civilizada nos trópicos. Daí o Império ter representado um importante papel no sentido de garantir que a transição fosse, de fato, continuidade, entre o que antes havia e aquilo que passou a existir depois.

Por essa razão, o Império consolidou o projeto colonial e o fez por intermédio dos mesmos artifícios. Assim, ao mesmo tempo em que a América Espanhola se fragmentava em muitas repúblicas, o Brasil Monárquico mantinha o seu território unificado e ameaçava tomar parte do território dos países com os quais fazia fronteira.

Por isso, o Estado Brasileiro, construído durante os oitocentos, valeu-se do mito geográfico da intocabilidade territorial para manter, em torno da figura do Imperador, uma forte centralização política, expressa de modo exemplar nas ações militares que debelaram as diversas revoltas regionais ocorridas durante o século XIX no Brasil.

Para Lia Osório Machado (1990), entretanto, essa centralização era combinada com uma descentralização que encontrava, nas oligarquias regionais, os acordos necessários e indispensáveis à realização material dessa política territorial.

“O Brasil daqueles momentos estava claramente distante de um nexo capitalista comparável ao europeu. Todavia, a defesa da propriedade era igualmente essencial, traduzida na propriedade de escravos e em propriedade territorial como formas principais de propriedade, além da defesa de um acentuado monopólio do direito de propriedade. Se tratava pois de defender os fundamentos de uma organização social e do trabalho, neste caso de trabalho escravo. A ameaça foi localizada nos movimentos regionais, nos movimentos urbanos, nas ‘perturbações da ordem estabelecida’, na ‘anarquia’ das novas repúblicas hispanoamericanas.” (Machado, 1990, p.221-222).

 

Posto dessa forma, o território mítico aparecia como uma herança colonial e, como tal, deveria permanecer, fazendo com que “[...] a unidade territorial aparecesse como base da unidade política” (Machado, 1990, p.717), de tal modo que fosse possível uma inversão muito propícia ao exercício do domínio político das classes dominantes. Sob a idéia de defesa dos interesses da unidade territorial, o que se defendia, de fato, eram os interesses dos proprietários de terras e de escravos.

A considerar essas questões poder-se-ia afirmar que boa parte dos símbolos da identidade nacional, construídos aqui durante e após a construção do Estado, estão eivados de geograficidade. Porque na ausência de uma história da nação e em um país de capitalismo tardio como o Brasil, era preciso recorrer a imagens geográficas e aos mitos de origem ligados à própria natureza.

Exemplo disso são as cores da bandeira nacional, geralmente associadas às riquezas naturais do País, quando na realidade elas são as cores da dinastia de Bragança ou de poder imperial e, portanto, uma referência à continuidade dinástica portuguesa (Ribeiro, 1995, p.87-88). Entretanto, as nossas referências simbólicas passaram, pelo próprio processo de construção do território, estendendo-se dos Monarcas ao espaço geográfico nacional e daí à nação.

Por isso, enquanto as bandeiras de muitos países fazem referência aos movimentos sociais que originaram a nação, como é o caso da bandeira francesa, no caso brasileiro as referências passaram a ser feitas em relação à natureza. E, por essa razão, não poucas vezes a própria história da nação foi tomada, simultaneamente, como um destino manifestamente grandioso pela própria natureza e o domínio dos espaços dessa natureza e de suas gentes como o grande feito histórico da nação.

Essa construção imaginária, muito eficiente, se apoiaria ainda na idéia de ser esse Brasil um país inacabado, ainda em construção, como nas palavras de Marlyse Meyer “a imensidão deste país-continente poderia explicar que ele não acabe nunca de ser descoberto” (1993, p.35).

Daí resulta, segundo Lilia Schwarcz, que

 

“os textos de geografia [do IHGB durante o Império] [...] cumprem um papel bastante específico. Boa parte deles referem-se a questões territoriais e de demarcação de limites, ganhando assim uma função bastante pragmática dentro do contexto específico da época, em que vários litígios desse tipo estavam em andamento.” (1989, p.22).

 

No entanto, essas preocupações permanecem existindo na república, como exemplifica bem o discurso feito pelo Dr. Nelson de Senna, nos trabalhos de abertura do I Congresso Brasileiro de Geografia, realizado pela Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, em 1909.

 

“[...] muito ainda resta a fazer, neste particular, Srs., para descortinarmos á civilisação toda essa vastidão intermina do Far-West do Brasil, toda essa extensão continua de chapadas e planaltos, de territorios desertos e mal conhecidos do longinquo Matto Grosso, da Amazonia Occidental, por exemplo – terras que como sabeis, e talvez á ignorancia dos cartographos estrangeiros, sobretudo em certos mappas inglezes, se demarcam neste com as manchas tristes de undiscovered countries ...” (ANNAES, v. I, 1910, p.175).

 

Lia Osório Machado aponta que essa

“[...] prática geográfica, foi se pautando por um compromisso, pragmático, nem sempre explícito, com a ordenação da ‘realidade’ do país, afastando-se dos debates teóricos, pretendendo um saber útil de gestão, um saber técnico. Isso pode ajudar a explicar o isolamento relativo da geografia no campo das ciências sociais no Brasil, e a compreender os motivos que tornaram a geografia brasileira uma geografia “voltada para dentro”, ou seja, a produção geográfica no Brasil tem sido fundamentalmente uma produção dirigida para a Geografia do espaço brasileiro.” (1995, p.313).

 

Possivelmente, um bom exemplo desse isolamento intelectual seja o livro Leituras brasileiras: itinerários no pensamento social e na literatura, de Mariza Veloso e Angélica Madeira, publicado em 1999. Esse livro, que é o resultado de um curso oferecido aos futuros diplomatas brasileiros, versa sobre as leituras essenciais para a compreensão do Brasil. Na bibliografia da obra não há uma só referência a geógrafos brasileiros.

As razões possíveis estão no fato de que, à medida que a Geografia se constituía como disciplina escolar e prática científica no Brasil, o seu papel fundamental foi o de instrumentalizar de um lado a sanha expansionista das elites dominantes e de outro disseminar, por intermédio da escola, as diversas ideologias geográficas necessárias à construção de uma identidade nacional natural, aistórica.

Esta leitura nos coloca frente a duas questões indissociáveis e fundamentais. A primeira diz respeito ao modo como o conhecimento geográfico foi, desde a ampliação do Tratado de Tordesilhas, um elemento de importância decisiva na constituição de uma ação permanente de unidade política, exploração econômica e violência estatal. A segunda refere-se ao papel do discurso geográfico na constituição de uma identidade nacional baseada em mitos naturais.

Aceitos os termos dessa problematização coloca-se para nós, geógrafos, um débito com as ciências sociais, em particular, e com as camadas expropriadas em geral. Um débito intelectual e político, porque implica na leitura da geografia como instrumento de poder estatal e de encobrimento dos processos sociais e históricos que delinearam o Estado-nação brasileiro.

É preciso então considerar as palavras de Antonio Carlos Robert de Moraes de termos escrito um

 

“capítulo singular da história do capitalismo: a formação da nacionalidade brasileira. Obra de conquista territorial, de apropriação do espaço, de exploração do homem e da terra. Da construção de uma sociedade e de um território. De uma sociedade que tinha a construção do território como elemento de identidade.” (1991, p.96).

 

Produto dessa naturalização da construção do País, disseminou-se um conjunto de concepções que, desde o princípio, tratavam o Brasil como um paraíso nos trópicos, formado a partir de processos pacíficos e com a ausência de comoções sociais. Como se aqui jamais tivessem ocorrido lutas sangrentas e a nossa mediação social não se baseasse no binômio favor-violência.

Possibilitando que muitas coisas aqui se dessem às avessas e, quando pensávamos que havia uma revolução em curso, o que estava a acontecer era uma grande mutretagem. As leis de terra foram feitas para que as pessoas não tivessem acesso à terra; o fim do tráfico negreiro representou a possibilidade de estender por mais trinta e nove anos a escravidão no Brasil; a independência foi feita sob a égide dos portugueses que foram nossos colonizadores, exatamente para manter nossa dependência com relação à Portugal e, junto com os portugueses, à Inglaterra (Martins, 1994).

Na realidade, a mediação social mais conhecida nossa é a violência, que marcou e marca nossa identidade. Violência contra os índios, contra os negros, contra os imigrantes, contra os pobres que nunca foram índios, nem tiveram donos, nem pátria mãe. E aí parece que esse imenso território sempre foi um mar de tranqüilidade, pois não só não foi como continua a não sê-lo. Em um país de capitalismo tardio como o nosso, a violência institucionalizada e de legitimidade centralizada nos aparatos do Estado, fez o território nacional que conhecemos pela cor verde ser várias vezes lavado de sangue.

Para finalizar, gostaria de dizer que a compreensão desse país exige uma profunda desconstrução de suas imagens geográficas constitutivas, sem o que se torna difícil apalpar o presente de modo mais realista. Nesse caso vale a lição de Walter Benjamim de que só esquecemos aquilo que temos coragem de recordar. Na luta contra o conformismo perante a civilização baseada na lógica da mercadoria, cumpre pensar que o Brasil daquele presente histórico não está longe de nós.

A proximidade da sua construção se apresenta não apenas simbolicamente, como querem bradar os pós-modernos de carteirinha e crachá, mas de modo perverso e real no combate aos movimentos sociais que colocam em risco a propriedade privada e a legitimidade social do Estado neoliberal.

Por isso, há formas e formas de relembrar os quinhentos anos. Os sem-terra, os índios e tantos outros espoliados que tentaram recordar a razia colonialista como crime à humanidade, foram espancados, presos, assassinados ou desapareceram misteriosamente. Os únicos índios aos quais é permitido falar se chamam Jerry Adriane e são cristãos, para que alguns intelectuais possam dizer que esse país é uma invenção, de que somos todos uns assimilados e que a única saída é nos adequarmos à ordem vigente.

Recebido para publicação em 18 de junho de 2000

SOUSA NETO, Manoel Fernandes de. La ciencia geográfica y la construcción del Brasil. Terra Livre, São Paulo, n.15, p. 9-20, 2000.

 

Resumen: Este artículo discute la relación entre la ciencia geográfica y la construcción material y simbólica del mundo moderno, buscando elementos para el entendimiento del Brasil y de la geografía producida entre nosotros en los últimos cinco siglos.

Palabras-clave: Geografía; territorio; ciencia; moderno.

 

The geographical science and the making of Brazil. Terra Livre, São Paulo, 15: 9-20, 2000.

Abstract: This paper discusses the relation between geographical science and the material and symbolical construction of the modern world. It looks for elements for the understanding of Brazil and also of the geography produced here in the last five centuries.

Key words: Geography; territory; science; modern.

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* Texto apresentado na mesa-redonda “500 anos – leituras, sentidos e significados”, como parte das atividades do seminário “Brasil – a propósito dos 500 anos... história, historiadores”, no Curso de História da Universidade Federal do Ceará, dia 5 de maio de 2000.