Amazônia: Ecografia, Soberania Nacional e o assalto das madeireiras*
Orlando Valverde
No clássico
livro "A Amazônia e a Cobiça Internacional", seu autor, o historiador
Artur Cesar Ferreira Reis, presidente de honra da CNDDA, demostrou
como a Amazônia brasileira foi, desde o século XVI, alvo da ambição das grandes
potências mundiais. Com diferentes objetivos geopolíticos e econômicos, várias
nações disputaram com os luso-brasileiros a ocupação e a posse dos imensos
recursos dessa região.
A partir do
século XVII, graças à visão geopolítica do Marquês de Pombal, à audácia dos
bandeirantes e à sabedoria diplomática de Alexandre de Gusmão, o nosso país
pôde assegurar para si o maior quinhão desse colossal estoque de recursos da
Terra.
Efetivamente,
a selva amazônica reveste, em estado natural, não só o norte do Brasil, mas
também grande parte de países vizinhos desde o norte da Bolívia, as vertentes
orientais dos dobramentos andinos até Vera Cruz, no México. Em larga faixa para
leste, a hiléia cobre o sul da Venezuela, a totalidade das três Guianas, bem
como as Antilhas.
As ações dos
países imperialistas sobre a Amazônia brasileira se acentuaram durante a
chamada "belle époque"
— período entre a guerra franco–prusiana (1870) e a
1ª guerra mundial (1914/18) — quando um produto amazônico, a borracha, teve a
demanda exacerbada nos grandes mercados.
A borracha,
extraída da seringueira (Hevea brasiliensis)
e do cancho, sobretudo do látex, (Caetilloa
ulei), tornou a Amazônia brasileira a fonte produtora
de 40% das pélas de goma elástica, no mercado mundial. Na pauta das exportações
do Brasil, a borracha ocupou o 2º lugar em valor, logo após o café, desde a
década de 1890 até 1913.
O surto da
borracha silvestre, foi deflagrado, em conseqüência de
prévias invenções, em particular a da vulcanização da borracha (nos EUA e
Inglaterra). Este processo torna a goma elástica resistente e durável,
permitindo o seu emprego em pneumáticos.
As inovações
introduzidas por Henry Ford nos EUA, no decênio de 1890, para a produção em série
de automóveis multiplicaram a procura para a borracha, cujo preço, em pouco
tempo passou de menos de U$ 1.00 para a mais de U$ 3.00 a libra-peso.
A velha
burguesia de Belém, de maioria portuguesa, passou rapidamente a controlar o
comércio atacadista da borracha, negociando diretamente com as grandes empresas
dos EUA e da Inglaterra e,de outro lado, fornecendo
"aviamentos" (alimentos e artigos de uso) aos seringalistas, isto é
os donos de seringais nativos. Do ponto de vista jurídico, estes eram reconhecidos
nas faixas relativamente próximas aos rios navegáveis. A imprecisão desses
limites nos interflúvios gerou numerosos conflitos
entre índios e seringueiros.
A história do
controle territorial
As plantações
de seringais nativos mais produtivas da Amazônia
ficavam no Acre, nas bacias dos afluentes da margem direita do Amazonas que
descem dos Andes.
O
descobrimento sobre a cartografia amazônica, no tempo em que A. de Gusmão
elaborou o tratado de Madrid, de 1750, levou a que se julgasse que o rio Javari
seria muito mais longo do que o é. Nessas condições, o paralelo ligando a
nascente do citado rio ao Madeira deixaria o Acre totalmente fora da América
portuguesa. Com isto não ficaram de acordo os seringueiros nordestinos que
subiram os vales do Madeira, Turus e Juruá. Eles
jamais souberam antes da existência do referido tratado; interessava-lhes
apenas sangrar seringueiras e exportar as pélas de borracha para as "casas
aviadoras" de Manaus e Belém.
Quando o
governo boliviano instalou postos aduaneiros nos citados rios, a juzante dos seringais, os seringueiros, em maioria
cearense, armados de rifles, expulsaram os guardas
alfandegários e seus chefes.
Instaurou-se
um clima de guerra na Bolívia. O próprio presidente do país, general Pando,
afastou-se do cargo e foi combater os insurgentes na selva acreana. Jamais
conseguiu vencer uma batalha contra o "exército" de seringueiros,
chefiados por um guerrilheiro improvisado: o gaúcho Plácido de Castro.
Entusiasmado
com seus êxitos bélicos, Plácido proclamou a República Independente do Acre.
Criou-se assim, uma conjuntura histórica semelhante à da conquista da
Califórnia pelos norte-americanos sobre o México.
Neste contexto
o governo norte-americano propôs a fundação de uma companhia da carta ("chartered company"), intitulada
"Bolivan Syndicate",
com sede em Nova York, para administrar a região conflagrada. Esta foi a primeira tentativa grave e descarada para conquistar uma
vasta e rica fração da Amazônia. Esta manobra de pirataria imperialista, fora precedida por outra bem sucedida, pelos ingleses nas
ilhas Malvinas ou Falklands (Argentina), que até hoje
permanecem em mãos de uma "chartered company" britânica.
O
talento diplomático do barão do Rio Branco fez abortar o plano norte-americano
negociando diretamente com o governo da Bolívia o tratado de Petrópolis, em
1903, através do qual o Brasil adquiriu o atual território do Acre por dois
milhões de libras esterlinas, comprometendo-se também a construir a ferrovia
E.F Madeira-Mamoré e dar direito de alfândega livre à Bolívia em Porto Velho,
onde seus navios teriam acesso ao Atlântico.
A construção
da ferrovia, de bitola estreita, entre Porto Velho e Guarajá-Mirim
(360 km), levou muito tempo. Terminou em 1912 e custou um enorme contingente de
vidas, vitimado principalmente pela malária. O governo brasileiro teve de
mobilizar uma equipe de médicos, da qual participaram os higienistas
Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, elaborando um programa para controlar a epidemia.
O trecho
boliviano da estrada, que deveria chegar até Riberalta
no rio Beni, nunca foi construído, visto que já se configurara a crise final da
borracha silvestre.
A
interferência do imperialismo inglês na Amazônia brasileira durante o período
áureo da borracha se deu de maneira mais sutil e inteligente: em 1875, contrabandeou
dezenas de milhares de sementes e mudas de Hevea brasiliensis. Das estufas de Rew gardens, em Londres, os clones foram transferidos para a
Malásia, formando "plantations",
subsidiadas, a princípio, pelo governo britânico.
Pouco tardou
para que os holandeses trouxessem grande número de Heveas
desse habitat asiático para suas ilhas vizinhas Sumatra e Java.
Clima quente e
úmido, solos férteis, mão-de-obra abundante e também miserável, fácil acesso
marítimo aos grandes mercados, grandes capitais e tecnologia avançada foram os
fatores que permitiram a implantação da mais de 1 bilhão de seringueiras no
sudeste asiático. E o preço das lâminas de borracha, nas fábricas
norte-americanas, desceu a cerca de 5 centavos de dólar a libra-peso.
O colapso da
economia da borracha, extrativa na Amazônia teve características dramáticas: as
firmas "aviadoras" de Belém e Manaus faliram. Os seringalistas
tornaram-se funcionários e políticos nas cidades; alugaram ou venderam suas
mansões ou foram-se embora. Os seringueiros tornaram-se ribeirinhos, vivendo da
pesca e de roças de subsistência; mas para eles a vida não mudou muito, já que
eles dependiam economicamente dos preços impostos pelo barracão do seringal. Dali não podiam fugir sem saldar sua dívida. Cárcere
privado, castigos corporais ou a morte eram ameaças constantes aos infratores.
Nesta
sociedade injusta os impactos ambientais foram, no entanto insignificantes. No
peru e na Colômbia, a agressão à natureza foi um pouco maior porque os "caucheros" abatiam as árvores para extrair-lhe a
lacta, o que não se faz com a Hevea no Brasil.
No texto
constitucional de 1946, o Congresso Nacional deixou clara a sua preocupação com
o abandono em que fora deixada a imensa região amazônica. Ficou determinado que
o governo federal aplicaria 3% de sua receita em
projetos de desenvolvimento e ocupação regional. Assim, foi criado em 1953 um
órgão oficial para esse fim: a SPVEA, mais tarde denominada SUDAM
(Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia).
A destruição
da floresta
A mudança da
Capital Federal para Brasília em 1960, envolveu em seu bojo um plano de
ligações rodoviárias com todas as regiões brasileiras. Com o Sul e o Sudeste
tudo foi fácil; mas com as regiões pobres não. A Belém-Brasília ficou
completada em 1967; a Brasília-Acre no final dos anos 70; porém a rodovia para
o Nordeste até hoje apresenta segmentos de circulação precária.
Talvez com
objetivos mais publicitários do que geoeconômicos, o governo determinaria no
início dos anos 70 a abertura da rodovia Transamazônica e a colonização de sua
faixa entre Marabá e Itaituba, no Tapajós. Nos férteis solos de Rondônia
Central, ondas sucessivas de colonos sem terra vindos de outras partes do
Brasil ultrapassaram a capacidade dos técnicos do INCRA de assentá-los de modo
organizado.
No sul do Pará
e norte de Mato Grosso, a SUDAM financiou projetos ambiciosos de pecuária de
corte, tendo em mira a exportação de carne. Esses projetos insensatos
resultavam em: devastações maciças da floresta amazônica, massacres de
trabalhadores rurais e índios, e também em desvios financeiros por total de
cerca de 4 bilhões de dólares.
A reserva
assegurada à Companhia Vale do Rio Doce na serra dos Carajás pelo governo
federal, preservou a cobertura florestal sobre uma superfície de erosão de uns
600 metros de altitude, onde se concentra a maior ocorrência de minerais
metálicos do planeta.
As técnicas
conservacionistas ali desenvolvidas e o relacionamento com os indígenas
vizinhos enchem de orgulho e alegria os visitantes; mas a privatização dessa
estatal levanta tristes dúvidas sobre o futuro desse patrimônio.
Em nome de uma
política neoliberal adotada pelos tecnocratas dos governos brasileiros, os
recursos florestais da nossa Amazônia abrem-se agora à fúria devastadora de
madeireiras transnacionais. São chamadas de "madeireiras asiáticas",
porém nelas há capitais oriundos de muitos outros países ricos: EUA,
Inglaterra, Alemanha, França, Bélgica, Holanda, Japão, China etc.
O assalto das
madeireiras
As madeireiras
comerciais da mata congolesa estão hoje muito escassas, por causa da longa
exploração dos países colonizadores da Europa e da densa população nativa que
ali vive.
Enquanto os
países do sul e sudeste asiático permaneceram como colônias da Inglaterra,
Holanda e França, dali surgiram os primeiros experimentos sobre silvicultura e
solos tropicais, mas os novos e frágeis governos independentes não puderam
contrapor-se à ganância e ao poder de corrupção das modernas madeireiras. Além
disso, segundo esclareceu o ecólogo Philipp M. Zearnside, do INPA de Manaus, e conhecedor daquelas
regiões, as matas dos trópicos asiáticos são mais homogêneas e mais facilmente
acessíveis que as da nossa Amazônia.
As ilhas
Filipinas estão praticamente desnudas de florestas. A erosão acelerada soterrou
em lixo mais de 100 pessoas de uma favela em Manila. Terraços com arrozais que
cobriam as vertentes montanhosas de Sumatra têm sido arrastados em corridas de
lama, após aguaceiros monçonais.
Quando diretor
do INPA, na década de 80, o Dr. Enéas Salatti,
através da análise dos isótopos de oxigênio contidos na água das chuvas caídas
em Manaus, comprovou que as matas a leste dessa capital até o Atlântico
reciclam cerca de 50% das precipitações, antes de lá chegar. Portanto, se essa
faixa florestal — que tem 1.500 km de extensão e mais de 100 km para cada
margem do rio Amazonas — for arrasada os totais anuais de chuvas em Manaus (que
eram de pouco acima de 1.800 mm), cairá a menos de 1.000 mm. E isto já
aconteceu: as medições pluviométricas mais recentes em Manaus registram pouco
mais de 1.300 mm/ano. As temperaturas, por seu turno, aumentaram.
O Dr. H. Weischert, da Universidade de Freiburg
(Alemanha), é de opinião que 80% das chuvas caídas perto de nossa fronteira com
o Peru e Colômbia dependem da reciclagem da floresta situada a leste, até o
Atlântico. Hoje, essas precipitações que se elevam a cerca de 2.400 mm/ano,
deverão reduzir-se a 480 mm apenas. Naquela latitude, isto eqüivale
a um clima semidesértico.
As notícias
provenientes de nossa Amazônia neste final de século são, porém, alarmantes. A
gigantesca empresa madeireira WTK chegou a Manaus e lá desembarcou mais de uma
centena de tratores pesados, cabos de aço, enormes caminhões, que seguiram para
Itacoatiara, em frente à boca do rio Madeira, cujo porto foi equipado para
receber grandes cargueiros para escoar a produção de grãos do Mato Grosso e de
Rondônia, assim como madeiras comerciais.
Mas antes
mesmo de chegar a Manaus, o grupo WTK comprou as serrarias e madeiras ali
situadas: a COMPENSA, Moraes Madeiras e AMAPLAC.
Sabendo de antemão
da abertura que o governo federal faria para as poderosas madeireiras
transnacionais, o Sr. Amazonino Mendes, governador do
Amazonas viajou para o Extremo Oriente (Coréia do Sul, Malásia e Indonésia) e
já de retorno, recebeu no palácio uma delegação de empresários chineses. De
fato, segundo o boletim INFOC, de economia florestal, o objetivo das
gigantescas madeireiras alienígenas é o de elevar a exportação regional de
madeiras a 100 milhões de metros cúbicos anuais, em lugar dos 600 mil metros
cúbicos que a Amazônia produzia em 1995.
Deve-se
considerar que, das mais de 300 espécies de madeiras comerciais da Amazônia
atualmente conhecidas e classificadas, apenas pouco mais de 20 espécies são
exportadas, com ênfase, no mogno (Sucretia macrophyla), nas ucuíbas (Virola opp), numerosos cedros (Cedrella opp.), maçarandubas (Manilkare opp). etc.
Degradação
ambiental
Não há dúvidas
de que a hiléia amazônica não resistirá a tão violentos impactos. Os processos
de degradação ambiental nos trópicos úmidos agem rapidamente. Expostos à ação
de copiosas precipitações sem o manto florestal protetor a erosão acelerada se
desencadeia, seja sob a forma de ravinas (chamadas "voçorocas", em
Minas Gerais) ou em lençol. Exemplos do primeiro caso encontram-se no vale do Pindaré (MA), entre Santa Luzia e Buriticupu,
onde se formaram verdadeiras "bad lands" que provocaram graves desastres na Rodovia
BR-272. Outra "voçoroca" de uns 30m de profundidade cortou a
circulação rodoviária na Transamazônica, entre Altamira e Itaituba.
No nordeste de
Roraima, em solo revestido de cerrado, montículos protegidos por crosta laterítica, com cerca de 1,50m de altura, se elevam entre
terrenos aplainados pela erosão em lençol.
A luxuviação é o processo de arrastamento de nutrientes
dissolvidos pela água de inflitração até o lençol
freático, donde flui para os rios. Materiais finos, não sulúveis,
das freações argila, silte
a areia fina, são também arrastados pela água infiltrada até os horizontes
inferiores do perfil, mudando a textura do solo. Este processo é chamado de iluviação.
Em decorrência
da erosão, a sedimentação entulha os leitos dos rios. Isto é especialmente
grave nos rios navegáveis. No Brasil colonial o Rio das Velhas (Minas Gerais),
já foi navegável; mas os garimpos de ouro provocaram a erosão dos solos.
Agora, tais
processos, em grau mais incipiente, estão generalizando-se na Amazônia. A
concentração do ouro com mercúrio intoxica a fauna aquática e a qualidade do ar
para os que trabalham nesse mister.
Os climas
locais de grandes áreas devastadas são alterados, com o superaquecimento dos
solos, a redução dos totais pluviométricos e a sazonalidade das chuvas. A ocorrências de densa névoa seca verifica-se hoje entre
Porto Velho e Rio Branco, e entre Belém e Imperatriz, no final da estiagem, a
ponto de interromper a circulação de aviões. Este fenômeno era desconhecido
nessas regiões, antes de 1950.
O estágio
final dos processos de degradação do ambiente das florestas equatoriais é
marcado por perdas praticamente irreparáveis: o desaparecimento de espécies de
seres vivos e, com eles uma infinidade de madeiras preciosas, frutos, fibras,
flores, raízes, alimentos, perfumes, tornando mais pobre a
vida humana no planeta. Povos da floresta: índios, castanheiros, seringueiros, cablocos ribeirinhos serão sem ela também extintos.
Diz a nossa
"Constituição cidadã", de 1988, que os solos, matas, águas e minerais
do Brasil, pertencem ao povo brasileiro. Sábios preceitos consagrados nesta
Carta Magna têm sido, porém, repetidamente conspurcados por políticos corruptos
atuais. "Quaisqual tendem"?!
Não só aos
militares, mas também a todo o povo brasileiro cabe defender nosso inestimável
patrimônio. O Vietnã demonstrou como fazê-lo; porém líderes autênticos, como Ho-Chi-Min e Giap não se
"fabricam" da noite para o dia, nem tampouco sem a confiança
irrestrita do povo da região.
Orlando Valverde, nasceu no Rio de Janeiro em 1917; foi geógrafo do
IBGE até 1982, professor da PUC/RJ, geógrafo pesquisador no Centre d’Etudes de Géographie Tropical do
CNRS em Talence (França), professor visitante nas
universidades UCLA, em Los Angeles (EUA) e de Heidelberg, na Alemanha. Autor e co-autor de 20 livros de
geografia. É presidente da CNDDA (Campanha Nacional de Defesa e pelo
Desenvolvimento da Amazônia).
Biopirataria e
acesso aos recursos da biodiversidade
Marina Silva
Uma lembrança
nítida de minha infância, vivida num seringal do Acre, está ligada à chegada do
comboio, uma tropa de burros que vinha a cada 15 dias, para trazer mercadorias
de que não dispúnhamos, como sal e açúcar, e levar a
produção de borracha. Em geral, vinha antes o noteiro,
encarregado de anotar as encomendas de cada família e a previsão de borracha a
ser produzida.
Quando era
época da queda das sementes da seringueira, o noteiro
sempre avisava meu pai: "não esqueça de mandar as
meninas juntar as sementes para o comboio levar". Juntávamos dez, quinze
quilos de sementes com muita animação, pois em troca ganhávamos balas,
rapadura, "leite moça".
Uma vez
perguntei a meu pai para quê servia aquilo. Ele indagou do noteiro
que respondeu vagamente que devia servir para fazer sabão, a exemplo do que
acontecia com as sementes de uma outra árvore. Cresci
intrigada com essa história, porque sabíamos, com certeza, que a semente da
seringueira não se prestava a fazer sabão. Depois, já fora do seringal, tive
mais informações e tomei consciência do que acontecia. Aquilo que trocávamos
por bobagens devia estar sendo passado para algum banco de germoplasma
dos seringais da Malásia ou alimentando seringais de cultivo. Nem os próprios
seringalistas do Acre tinham consciência disso, tanto é que faliram.
O Estudo do
Problema
Essa
experiência de vida é a base de minha motivação para
ajudar a disciplinar o uso de nossa fabulosa biodiversidade, que já contribuiu
para enriquecer tantos, menos o povo brasileiro. O meu compromisso político com
o combate à biopirataria tem portanto uma raiz
profunda, a de ter sido ingenuamente utilizada, como tantos amazônidas,
em prejuízo próprio e do país.
O estudo do
tema da biopirataria no Brasil permite dois grandes enfoques que são
complementares mas representam ordens distintas de
questões. Um diz respeito às ações clandestinas de retirada de recursos de
nossa biodiversidade, como a que relatei. Em geral associamos esses atos à
pilhagem promovida no contato direto com comunidades que detêm conhecimento
original sobre propriedades de plantas ou animais.
Um bom exemplo
é o patenteamento de saberes do povo Wapixana de
Roraima e da Guiana inglesa, pelo químico Conrad Gorinsk,
numa clara violação dos direitos das comunidades indígenas e da Convenção sobre
Diversidade Biológica, de 1992, que fala explicitamente na repartição de
benefícios com as comunidades locais, pelo uso de seu conhecimento.
Gorinsk patenteou na
Europa e nos Estados Unidos o princípios ativos de
plantas usadas pelos índios como estimulante do sistema nervoso central e
antifebril. Apesar de ter passado muitas temporadas com os Wapixana,
utilizando-os como guias para identificar plantas medicinais bem como para
aprender seu uso, Gorinsk sequer pediu sua
autorização ou propôs qualquer forma de remunerá-los.
Nesse caso,
houve o repúdio explícito de povos indígenas reunidos em assembléia em
fevereiro deste ano, apoio jurídico e político de aliados e recurso a tribunais
internacionais. O que as comunidades cuja vida está diretamente ligada à
biodiversidade reivindicam é partilhar a decisão sobre o uso do conhecimento
que desenvolveram milenarmente. Também rejeitam patenteamentos cujo único
objetivo é beneficiar interesses particulares ou de companhias transnacionais
que disputam o controle do mercado mundial dos medicamentos.
O lado obscuro
da biopirataria
O segundo
enfoque traz à tona outra faceta da biopirataria, repleta de ambigüidades e
zonas de sombras, relacionada à maneira pela qual o Brasil, por meio de seus
poderes públicos, tem tratado a questão da regulação do acesso à
biodiversidade. Esse enfoque ajuda a entender embates que se dão principalmente
nos planos político e institucional, caracterizando subtrações e prejuízos ao
patrimônio genético do país, muitas vezes sob abrigo oficial ou oficioso.
Desse ponto de
vista, temos a biopirataria como prática que se infiltra pelas lacunas legais e
ressalta o papel negativo que autoridades brasileiras vêm desempenhando, seja
por negligência, seja por atitude que poderíamos chamar de pragmatismo
irresponsável frente ao patrimônio genético do país, como demonstra o exemplo
analisado a seguir.
O acordo
celebrado entre a Associação Brasileira para o Uso Sustentável da Amazônia-Bioamazônia e a multinacional suíça Novartis Pharma, que veio a público no mês
de junho último, tem o objetivo de coletar 10 mil microorganismos na Amazônia e
identificar substâncias com potencial industrial.
A Bioamazônia é uma das primeiras Organizações Sociais (Lei
9.637/98), criadas como parte da reforma do Estado, para repassar a entidades
privadas funções e recursos públicos em determinadas áreas, por meio de
contratos de gestão. As OS foram vistas com certa reserva, apesar de seu potencial
modernizador, por serem espaço que, sem adequado controle social, poderia
prestar-se ao esvaziamento da responsabilidade do Estado e a negócios pouco
claros envolvendo interesses públicos e privados.
A história da Bioamazônia, até aqui, mostra que as preocupações não eram
infundadas. Ela foi criada pelo governo, com o objetivo declarado de
desenvolver a biotecnologia e a bioindústria na Amazônia, no âmbito do Programa
Brasileiro de Ecologia Molecular para o Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia
(PROBEM). O governo tem 40% de participação em seu conselho e os restantes 60%
são preenchidos por entidades científicas, empresariais e outras. No contrato
de gestão assinado, o Ministério do Meio Ambiente tem a função de supervisor.
O acordo de
cooperação com a Novartis foi assinado em maio deste ano, porém, sem
conhecimento do Ministério do Meio Ambiente, conforme apontaram o próprio
Ministro Sarney Filho e a Secretária de Coordenação da Amazônia, Mary Allegretti. Em nota à imprensa, em junho, o Ministro Sarney
Filho afirma textualmente: "O Contrato de Gestão firmado pelo Poder
Público em momento algum autoriza a Organização Social Bioamazônia
a realizar acordos, convênios ou contratos de bioprospecção
com bioindústrias. Nesse sentido, o Ministério do Meio Ambiente entende que o
acordo firmado entre a Bioamazônia e a Novartis
extrapola o estabelecido pelo Contrato de Gestão e por isso não tem valor
legal." Ou seja, na prática, pode ser considerado um caso de biopirataria
disfarçado. No entanto o documento do acordo tem a assinatura, como
testemunhas, de autoridades da área econômica e de planejamento do governo.
Contra os
acordos de FHC
Desde a sua
divulgação causou reações de indignação em diversos setores. Na abertura da
reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência-SBPC,
em Brasília, a presidente Glaci Zancan
criticou o acordo, afirmando que os recursos da biodiversidade brasileira não
podem ser abertos às multinacionais da maneira como faz o governo de Fernando
Henrique Cardoso.
As
irregularidades são flagrantes e de certa forma chocantes, quando se constatam
algumas das cláusulas. Por exemplo: as partes declaram poder "alterar o
foco de sua cooperação parcial ou totalmente para um projeto suplementar
relacionado ao isolamento de compostos naturais purificados de plantas, fungos
ou microorganismos". Declaram ainda preenchidas as "obrigações
financeiras e outras relativas à Convenção de Diversidade Biológica",
quando se sabe que não existe ainda legislação brasileira internalizando os
dispositivos daquela convenção.
E mais: para
contornar o vácuo jurídico de que claramente padece, o acordo tenta se colocar
sob o abrigo das leis de propriedade intelectual, quando na verdade está
comercializando, em bases duvidosas, o patrimônio genético do país, que a
Constituição define, no seu art. 225, como de "uso comum do povo",
sob a proteção do poder público, que deve preservar a sua diversidade e
integridade. Finalmente, as partes elegem Londres como o local em que seriam
arbitrados eventuais contenciosos na aplicação ou interpretação do documento.
Trata-se,
portanto, de um fenomenal atropelamento, pelo governo - via Bioamazônia
- tanto dos princípios constitucionais vigentes de interesse público e
soberania quanto dos esforços para a construção de um marco legal para o uso da
biodiversidade brasileira, vista por muitos apenas como mais uma fonte de
dinheiro, na lógica economicista e financista que domina o poder público
federal atualmente no país.
As reações
contrárias e as evidências irrefutáveis de irregularidades provocaram recuo,
com a suspensão da vigência do documento. Mas, o lance seguinte confirmou o
açodamento utilitarista da visão oficial sobre nosso patrimônio genético. Em
lugar de reabrir a negociação em regime de urgência em torno de três projetos
de lei de acesso à biodiversidade, em fase final de tramitação no Congresso,
editou Medida Provisória (2052/00) criando um arremedo de lei para atender às
necessidades formais para a continuidade de negócios na área.
Há oito anos,
quando a Rio 92 aprovou a Convenção sobre Diversidade Biológica, estabeleceu-se
um marco no reconhecimento do caráter estratégico dos recursos de
biodiversidade e da necessidade de regular o seu uso, para o bem da humanidade
e benefício de cada nação detentora. O Brasil deveria, a partir daí, ter o
maior interesse em elaborar a legislação nacional sobre o assunto, dada sua
privilegiada biodiversidade. Além disso é
historicamente biopirateado e uma lei adequada seria
o primeiro passo para estancar a sangria.
Em 95 apresentei
projeto de lei para regular o acesso à biodiversidade. Até então, o Executivo
nada fizera a respeito. A partir da iniciativa do Congresso, houve debates em
todo o país (com audiências públicas em Brasília, São Paulo e Manaus) para os
quais foram chamados os segmentos que tinham algo a dizer sobre as várias
implicações do assunto, inclusive o governo. Interessante, os técnicos do
governo compareciam e anotavam mas nada falavam. Em
julho de 96, a Casa Civil da Presidência da República criou o Grupo Interministerial
sobre Acesso a Recursos Genéticos, cujas reuniões eram fechadas.
O projeto
tramitou no Senado em 97, tendo sido aprovado e enviado à Câmara em junho de
98, com substitutivo do senador Osmar Dias. Para garantir que não fosse
modificado na sua essência, logo em seguida o deputado Jacques Wagner (PT/BA)
apresentou outro projeto de igual teor. Em setembro, o governo apresentou seu
próprio projeto que, pode-se dizer, pirateava em parte o nosso e se omitia
sobre vários subtemas, a exemplo dos direitos das
comunidades tradicionais e das sanções contra a biopirataria.
Começou então
uma série de manobras pelas quais as lideranças do governo impediam o andamento
desses projetos. Acompanhava o projeto oficial uma Proposta de Emenda à
Constituição, transformando a União em proprietária do patrimônio genético do
país, o que significa dar ao governo o monopólio dos negócios com a informação
genética, sem interferência e controle social. Certamente por esse motivo,
sempre pareceu estar mais empenhado no andamento da PEC do que em seu próprio
projeto de lei. O episódio da Novartis mostra, na prática, o que se pretendia
com a PEC.
A MP, além de
desconsiderar o processo legislativo participativo e legítimo, em curso há
cinco anos, confirma o desígnio deste governo de colocar empecilhos ao controle
social das decisões sobre os recursos da biodiversidade. Centraliza num
conselho interministerial o poder de aprovar o acesso aos recursos genéticos,
alijando representantes da sociedade civil e tirando das comunidades indígenas
e tradicionais a possibilidade de interferir na autorização do uso de seu
conhecimento por terceiros. Regulariza indiscriminadamente (art. 10) contratos
já firmados à data de sua edição (30 de junho), consagrando a biopirataria
oficiosa. Afronta a Constituição no que diz respeito ao usufruto exclusivo
pelos índios dos recursos naturais existentes em suas terras e cria grande
instabilidade no caminho da transparência e da segurança para a regulação do
acesso à biodiversidade, visto que transforma em instrumento de negócios uma
MP, que pode ser mudada a cada 30 dias.
Esses
acontecimentos demonstram que é preciso ir além da idéia corrente quando se
fala em biopirataria. No Brasil, talvez mais grave do que a ação pontual
daqueles que roubam na fonte informações de nosso patrimônio genético, seja a
inação do poder público ou, o que é pior, o trato daquele patrimônio com avidez
financista e visão pobre, de curto prazo, abrindo caminho para negociações de
bastidores, no mínimo antidemocráticas e ilegítimas.
Assim, a
biopirataria não é hoje fruto apenas da falta de fiscalização e de legislação.
Ela resulta também de uma postura equivocada do atual governo sobre a
utilização e conservação do gigantesco patrimônio natural do país - como
florestas, água e solo - impedindo que a sociedade brasileira faça dele
alavanca eficaz para um desenvolvimento que proporcione geração de emprego,
renda e melhoria da qualidade de vida para todos.
Nota do
Editor: recebemos do Professor Carlos Walter Porto Gonçalves um conjunto de
textos sob o título Amazônia: os índios e a integridade do território nacional.
Em virtude do tamanho publicamos as matérias centrais.
A versão
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A R-EXISTÊNCIA
DOS ÍNDIOS: tradição e modernidade
Carlos Walter
Porto Gonçalves
O contexto de
crise da década de oitenta possibilitou, para além do epíteto de década perdida,
uma reflexão crítica sobre o modelo desenvolvimento que se vinha tentando
implantar na Amazônia. Como parte dessa mesma crise há, como sabemos, a
emergência de um novo padrão tecnológico que, por sua vez, estabelece uma outra relação com a natureza, pelo menos quanto aos seus
meios, e não necessariamente quanto aos seus fins (que continuam a ser o
lucro). A valorização da vida, como atestam a Teoria de Gaia
ou a biotecnologia, ou a descoberta de novos materiais e procedimentos
tecnológicos menos consumidores de energia e matéria prima, a consciência
ecológica, enfim, ensejam novas e outras perspectivas para populações, como as
indígenas, que dependem fortemente de uma relação íntima com a natureza.
Queremos
ressaltar as implicações da revolução tecnológica em curso para as populações
tradicionais, particularmente para as populações indígenas. Em primeiro lugar,
as novas tecnologias de comunicação têm proporcionado que outros sujeitos
sociais se expressem através de redes telemáticas. Assim, segmentos sociais até
aqui invisibilizados vêm conseguindo ultrapassar as
barreiras nacionais na defesa de direitos humanos básicos, em particular,
denunciando massacres a que foram (e são) submetidos, cuja divulgação só se
fazia quando não se podia mais reverter o quadro.
O caso mais
significativo foi o do Jornal do Brasil que dispunha de uma entrevista com
Chico Mendes desde o dia 8 de dezembro de 1988, quando ele alertava,
exatamente, para as ameaças de morte que estava sendo vítima, e que só foi
publicada no dia 23 de dezembro após a ampla repercussão mundial de seu
assassinato. A imprensa brasileira repercutiu a repercussão da morte de Chico
Mendes e não o seu assassinato. Hoje é possível fazer a informação circular
praticamente em tempo-real e pressionar as autoridades nacionais a tomar
providências. Paradoxalmente em países economicamente dependentes de apoios
financeiros internacionais, como o Brasil, essas pressões, articuladas com
organizações da sociedade civil dos países hegemônicos, têm demonstrado uma
grande eficácia política.
As elites
tradicionais brasileiras têm sentido esse efeito, particularmente, quando se
trata de numa região tão significativa para o debate internacional, como a
Amazônia, e se vêem constrangidas elas que, até aqui, conseguiram se integrar à
divisão internacional do trabalho através da dilapidação dos recursos naturais
e da super exploração do trabalho. Tudo indica que, tendencialmente,
um novo quadro se estrutura, abrindo outras perspectivas para essas populações
indígenas, outras populações tradicionais e todos aqueles segmentos sociais que
propugnam pelos direitos humanos básicos, como o direito à vida, para não dizer
dos direitos sociais, do que, até aqui, o MST tem sido um protagonista
nacionalmente enraizado e internacionalmente antenado.
Sem dúvida,
essa nova configuração internacional, no qual se realinham os diferentes grupos
e classes sociais, está presente na reversão da tendência à diminuição da
população indígena no Brasil. Eles que já foram 180.000, nos anos 70, são hoje
cerca de 350.000 indígenas. Este é um fato que devemos sublinhar, pois desde a
chegada dos portugueses ao Brasil só registrávamos extinção e diminuição de
população indígena
Nas palavras
de Jorge Terena: «Sem dúvidas, somos muito privilegiados. Podemos dizer que
estamos bem melhor que alguns membros da sociedade em geral. Temos terra para
plantar e colher a comida para a nossa sobrevivência, temos floresta para
caçar, e em alguns lugares rios para pescar. Mas não são todas as comunidades
que têm esses privilégios. A riqueza que todos temos é de não necessitarmos de
comodidades como creche para os nossos filhos, cadeia para marginais, asilo
para velhos porque pertencemos a uma sociedade onde todos os membros trabalham
para melhorar a vida da comunidade. Mas por causa da exploração ilegal dos
recursos naturais de nossas terras, sem ter nenhum retorno para a comunidade,
estamos sendo afetados pela pobreza, pela destruição e pela negligência. As comunidades indígenas e suas Organizações, cansados de esperar
pelo Órgão Indigenista Oficial começam a buscar meios próprios de melhorar a
vida seja por intermédio de autodemarcação dos seus
territórios, seja por projetos de auto-sustentação com atividades produtivas».
Sabemos que é
antigo o interesse pelas "drogas do sertão" que levou para a Europa
aquelas pélas (bolas) que contrariavam a lei da gravidade, a borracha, como se
expressou, com toda a ignorância, um europeu à época. Esse interesse está hoje
revigorado pelas novas vertentes do desenvolvimento tecnológico, como é o caso
da biodiversidade com a biotecnologia.
As populações
indígenas são portadoras de um acervo cultural extremamente rico, assim como de
um enorme conhecimento a respeito da biodiversidade das florestas e demais
ecossistemas da Amazônia e, por isso, mais do que um obstáculo ao
desenvolvimento são, ao contrário, condição para o desenvolvimento de
tecnologias de ponta, como a biotecnologia.
O antropólogo
William Balée afirma que "os diferentes perfis
dessas florestas podem ser vistos como artefatos arqueológicos, em nada
distintos dos instrumentos e cacos de cerâmica, uma vez que elas nos abrem uma
janela para o passado da Amazônia", num trabalho sugestivamente sob o
título "Florestas Culturais da Amazônia" (Balée,
1987). Espécies como a castanheira, babaçu, cacau "selvagem" (Theobroma sp.)
ou o ingá (inga spp.) são
encontradas em biótopos os mais variados e são pistas
importantes para estudar a própria ocupação humana da Amazônia.
O antropólogo Darell Posey, em estudo entre os Kayapó, admite a hipótese de uma categoria intermediária
entre plantas domesticadas e plantas silvestres: a de plantas semidomesticadas. Fala dos períodos de longas caminhadas,
com duração de até três meses, que as famílias Kayapó
empreendem na estação seca, encontrando nas trilhas por eles abertas e em
nichos por eles criados, ou por seus antepassados, o necessário à vida. É
possível afirmar-se, com as pesquisas já realizadas, que as populações
indígenas contribuíram enormemente para a composição da floresta tropical que,
nesse sentido, deveria estar sendo denominada de Floresta Cultural Tropical
Úmida.
Talvez ainda
fosse interessante lembrar que as principais plantas de que se alimenta a
humanidade hoje foram domesticadas pelos ameríndios: a batata (Solanum tuberosum), originária do
Peru, onde são conhecidos mais de 7000 cultivares, e
que é erroneamente chamada de batata inglesa; a mandioca (Manihot
esculenta) e a macaxeira (Manihot
dulcis); o milho (Zea mays), base da alimentação humana e animal em todo o mundo;
a batata doce (Ipomoea batatas); o tomate (Lycopersicum esculentum); feijões
e favas, como o amendoim (Arachis hypogaea);
frutas como o cacau (Theobroma cacao),
o abacaxi (Ananas sativus),
o caju (Anacardium occidentale),
o mamão (Carica papaya), o
ingá (inga spp.), e muitas
outras; amêndoas como a castanha do pará (Bertholletia excelsa); plantas estimulantes como o guaraná
(Paullinia cupana), erva mate (Ilex
paraguairensis), o fumo (Nicotina tabacum);
plantas medicinais como a ipecacuanha (Cephalis ipecacuanha)
de que se extrai o cloridato de emetina;
a copaíba (do gênero Copaifera) usada contra afecções
das vias urinárias; a quinina (do gênero Chinchona),
que até 1930 era o único antimalárico disponível; até plantas de largo emprego
industrial como a borracha (Hevea brasiliensis),
ainda não totalmente substituída pela sintética, sobretudo no uso de luvas
cirúrgicas e de preservativos de melhor qualidade; a palmeira carnaúba (Copernicia sp.) de que se extrai
cera e a palha; o timbó (Theprosia sp.) que contém ingrediente de DDT - a rotenona
- usado como inseticida, na medicina sanitária e na agricultura; além das
plantas manufatureiras que os indígenas cultivavam ou utilizavam em estado
silvestre como o algodão (Gossipium spp.); o caroá (Neoglaziovia varietata), espécie de bromélia que usavam para fazer fio e
tecido e a piaçaba (Leopoldinia piassaba)
de largo uso como vassouras, escovas, capachos.
Insistimos que, mais que os produtos de que, hoje, toda a humanidade pode
usufruir, há todo um conhecimento da ecologia dessas espécies que envolvem
modos específicos de apropriação material/simbólica da natureza, estamos diante
de outras matrizes de racionalidade que são fundamentais nesse momento
de busca de novas referências paradigmáticas para a relação homem-natureza.
O que se
coloca, portanto, é a necessidade de novas relações dos homens e das culturas
entre si, a começar pelo reconhecimento de que se tratam
de interlocutores qualificados, e não de indolentes e preguiçosos; que essas
populações indígenas são portadoras de uma cultura, e não são simplesmente da
selva, no sentido de que são natureza que, sabemos, na cultura ocidental deve
ser dominada. A Amazônia ainda guarda, com diferentes povos, essas outras
matrizes de racionalidade que mostram a riqueza e a diversidade da espécie humana
sob os nomes de Yanomami, Magüta
(Tykuna), Makuxi, Kampa, Kayapó, Karajás, Tapirapé, Xavante, Kaxinauá, Wãiapi, Waimiri-Atroari
...
Tudo indica
que o medo de manipulação das populações indígenas, sobretudo por forças
externas, só se coloca para aqueles que continuam ignorando sua capacidade de
elaboração política. Senão vejamos "O Encontro dos Pajés foi a maneira que encontramos para reunir a sabedoria dos nossos
espíritos, pois é preciso que o homem branco saiba ouvir a nossa voz".
Chama a
atenção de todos que é preciso fazer leis para proteger nossa sabedoria e os
conhecimentos tradicionais contra a biopirataria, o roubo das plantas, do nosso
sangue, das madeiras e dos minerais. Tudo o que protegemos durante séculos
pertence ao Brasil e aos povos do Brasil . (...)
Diante de tudo isso, os pajés assinam com suas mãos este documento afirmando
seu compromisso coma vida, mas é preciso um compromisso do governo federal.
O compromisso
de nunca abandonar os povos indígenas em nome do desenvolvimento errado que tem
causado mais pobreza do que riqueza aos brasileiros. O governo brasileiro deve
fazer um grande esforço para terminar a demarcação das terras. O governo do
Brasil deve fortalecer suas relação com os povos indígenas, criando uma Funai forte e capaz de proteger as
questões indígenas. Nós, os pajés, estamos rezando
todos os dias e o grande espírito quebrará a força do inimigo, fazendo com que
tenhamos terras e vida para todos os brasileiros, preservando o meio ambiente e
a força espiritual" .
Há, ainda, uma outra dimensão ligada à revolução que enseja novas
outras perspectivas para as populações tradicionais. Ela diz respeito àquilo
que Pierre Lèvy chamou de tecnologias da
inteligência. É sabido que a informática torna possível que estabeleçamos uma
lógica não-linear com o conhecimento. Ao contrário da escrita
que exige que obedeçamos à seqüência justaposta e linear de cada letra, de cada
palavra, de cada frase, da seqüência das frases, dos parágrafos, das páginas de
um texto, sabemos que, com um simples clique num mouse, podemos navegar de um
assunto para outro, fazendo interconexões em rede, tal e qual fazemos numa
conversa de bar, quase sempre não-linear.
O mesmo
pode-se dizer dos saberes tradicionais, mais holísticos, não-lineares. Deste
modo, as novas tecnologias de comunicação, até por permitirem expressar-se de
modo não-linear, valorizam essa outras matrizes de
racionalidade, emprestando-lhe uma dignidade que, cada dia mais, vem sendo
reconhecida (vide documentos de cientistas da UNESCO, Paris e Veneza, 1986 e
1991)
Como as
modernas teorias da comunicação nos esclarecem a informação é diferente do
dado. A informação pressupõe que o dado tenha sido apropriado por uma matriz
cultural que lhe dá sentido, que lhe dá significação, no caso das sociedades
humanas, ou por um contexto teórico, no caso do campo científico. Sendo assim,
não basta que exista uma espécie botânica, por exemplo. É necessário que ela
tenha ganhado a dimensão de informação que, por sua vez, pressupõe uma cultura,
ou uma teoria. Cada matriz cultural dos diferentes povos são, por assim dizer, softwares.
Assim, junto com a biodiversidade que muitos vêm destacando, a diversidade
cultural também ganha dimensão política. A tradição
ganha a dimensão de suporte para uma outra
modernidade.
É preciso não
esquecer que, assim como no caso dos seringueiros, a problemática indígena
envolve uma dimensão territorial que, embora não se esgote na problemática da
terra, necessariamente a comporta, colocando-se, portanto, como uma das
dimensões a serem contempladas na complexa questão da Reforma Agrária. A
problemática indígena está indissoluvelmente ligada à questão agrária
brasileira, de um lado, e, de outro, à nossa tradição de vermos os índios como
não-cidadãos, como seres inferiores.
NOVOS
CENÁRIOS, NOVAS POSSIBILIDADES POLÍTICAS
Vimos que onde
se falava de "vazio demográfico" existe uma realidade complexa,
constituída por múltiplos sujeitos portadores de diferentes matrizes de
racionalidade, particularmente relevantes nesse momento em que mudanças de
padrões tecnológicos e socioculturais se colocam em questão. A partir de agora,
sem dúvida, a imagem que se tem da Amazônia não pode ser simplesmente mais uma
imagem sobre a região, sem considerar os amazônidas
como protagonistas ativos de seu presente/futuro.
Se a Amazônia,
desde sempre, se colocou com uma construção tecida local/regionalmente no
interior de uma ordem colonialista e imperialista e, portanto, desde sempre,
internacional, hoje essa complexa relação se coloca sob novas mediações. Já não
se coleta simplesmente as "drogas do sertão", o látex ou a madeira
para exportar através das Casas Comerciais de Belém e Manaus. As diferentes
configurações socioculturais da Amazônia já não são simplesmente
"clientes" de "patrões". Hoje cada nova apropriação do
solo, da terra, do subsolo, do minério, das águas, da fauna ou da floresta que
grupos empresariais nacionais e internacionais tentam fazer há, de outro lado,
populações tradicionais (e outros grupos sociais que com elas aprenderam a se
relacionar com esses mesmos recursos) que se apresentam como protagonistas de um outro possível uso a partir de outras matrizes de
racionalidade que não se medem, exclusivamente, por uma lógica econômica.
As novas
tecnologias abrem a possibilidade para que essas populações, até aqui
submetidas pelos mecanismos tradicionais de mediação política,
quase sempre clientelísticos, se relacionem nacional e
internacionalmente. A telemática, combinando informática com as
telecomunicações, tem permitido que, em tempo-real, um massacre seja conhecido
em Brasília, Londres, Paris ou Nova York.
O monopólio
das articulações extra-regionais e internacionais já não é mais privilégio dos
"de cima", como gostava de falar o saudoso Florestan Fernandes. E,
agora, cada vez mais se percebe que o massacre é, na verdade, o epifenômeno de um conflito básico envolvendo matrizes de
racionalidade distintas, enfim, diferentes culturas com suas formas e seus
modos de apropriação simbólico-material da natureza. Deste modo, não é só a
questão de a quem pertence a natureza que está posta
mas, também, a questão das diferentes concepções do que seja a natureza.
Num momento
como o que vivemos, onde novas (di)visões se fazem,
onde tantos muros caem, é preciso que se vá além ideologia liberal que crê que
o que caiu foi, somente, o Muro de Berlim. Caíram, também, os muros que
isolavam essas populações de um diálogo direto com movimentos sociais
extra-regionais nacionais e internacionais.
NOVAS
MEDIAÇÕES POLÍTICAS: DAS ONGs E SUAS AMBIGUIDADES Sublinhemos que, até o início
dos anos 80, antes de serem não-governamentais uma série de
entidades se autodenominavam sem-fins-lucrativos. Como ambas denominações se definem pelo negativo — sem e não —
essas designações nos falam mais pelo que negam do que pelo que afirmam. No
primeiro caso — entidades sem-fins-lucrativos — é a idéia de lucro que se quer
negar. No segundo caso — organizações não-governamental
— é o governo, no limite é o Estado, que se quer negar. Não ver aqui uma forte
influência das idéias liberais só se explica por esse poder mágico das
ideologias.
Sabemos que a
identidade de Organizações Não-Governamentais está ligada às tradições
liberais, com fortes raízes na formação político-cultural norte-americana
. Afinal, não-governo é a matriz do pensamento liberal. O crescimento
dessas entidades, de início nos países centrais, revela, ao contrário do que se
diz, a fragilidade da sociedade civil para sustentar e garantir as conquistas
efetuadas nos marcos do Welfare State.
A lentidão dos governos e da burocracia, expressão vaga que de tão repetida
acaba por explicar tudo, é invocada para justificar a maior flexibilidade e
capilaridade dessas outras formas de organização. Diz-se que elas devem ser,
coerentemente, não-partidárias, posto que partido é
uma instituição que visa o governo.
Subjacente a
isso, sem dúvida, há uma mão de obra que configura um novo tipo de
desempregado, qualificado com formação técnica e/ou universitária, uma criação
da Terceira Revolução Industrial. Esse é o caldo sociocultural de onde emergem
as organizações não-governamentais. Sua capacidade argumentativa invocando a
racionalidade (do uso dos recursos naturais, por exemplo) é disso uma
demonstração inequívoca. A crítica ao consumismo e ao desperdício, portanto, à
irracionalidade do "sistema", da destruição da guerra alimentada pela
criativa indústria bélica, não emerge dos setores inseridos no modelo de
consumo de massa, ao contrário, parte daqueles que foram excluídos do sistema
produtivo, mas detém um capital cultural capaz de analisá-lo criticamente posto
que dominam seus códigos. Dominam as tecnologias da
circulação de idéias, são mediadores e, a partir daí, já que não estão nas
estruturas de produção tradicionais se colocam como mediadores críticos de
interesses variados. Não nos esqueçamos que, pelo menos no Primeiro Mundo, os
sindicatos eram parte do pacto fordista que configurava a sociedade de consumo
de massa.
Não é difícil
vermos aqui os ambientalismos. Não é difícil vermos
aqui, também, se atualizarem mitos, como o da natureza intocada que precisa ser
colocada a salvo da sanha desenvolvimentista. Não é difícil vermos emergir
encontros amazônicos/planetários.
Desses
encontros emergem, também, o que não estava
necessariamente inscrito nesses diferentes vetores através dos quais uma
reorganização societária de grande envergadura se vem pondo no mundo.
Diferentes sujeitos sociais, até então tidos como desqualificados culturalmente
para o debate, ganham visibilidade. Aquela violência que esteve no nascedouro
do processo de constituição das relações sociais de corte capitalista na
Europa, que pressupõe a separação do homem da natureza, como se deu com a
privatização das terras comunais nos "Enclousures"
na Inglaterra, ou com a simples queima de cabanas de camponeses enfim, com
muito sangue, suor e lágrimas, se dá agora ao vídeo e
em cores, em tempo-real. Um fax-modem faz com que a informação, à velocidade da
luz, supere as longas distâncias amazônicas.
Como é da
natureza do fato político se manifestar em público, na Polis, é preciso que se
tenha direito à voz. Livres dos controles clientelísticos e com o apoio desses
novos mediadores, novos sujeitos políticos emergem de velhas matrizes
socioculturais na Amazônia e se apresentam como protagonistas para o debate.
São outros ecos.
Na Amazônia,
sem dúvida, o isolamento enseja uma condição muito favorável a que os "de
baixo" fiquem à mercê seja do "barracão" do seringalista ou do
fazendeiro, ou do marreteiro que vem pela estrada, ou do regatão que vem pelo
rio, enfim do "patrão", dos "patrões". Não há dúvida que, na
esteira de Chico Mendes e dos mais diferentes movimentos indígenas, outros
sujeitos sociais emergiam à cena política para o que,
sem dúvida, tanto as organizações sem-fins-lucrativos, como as não-governamentais,
contribuíram, ao se inscreverem quebrando as mediações tradicionais,
oferecendo-se, assim, outras possibilidades para que esses sujeitos sociais se
constituíssem com personalidades políticas próprias.
Eis uma das
razões que "os de cima" invocam para transferir para os
"ecologistas" o perigo antes representado pelos
"comunistas". Em uma Audiência Pública para avaliar a construção de
uma estrada no Amapá podiam-se ver faixas e cartazes dizendo "Queremos
Estrada e Não Estranhos".
Os
"ecologistas" e as "organizações não-governamentais" são os
novos "infiltrados", são "estranhos" às relações de
dominação tradicionais. Sabemos a força desses recortes, dessas (di)visões do mundo social que criam barreiras, onde aqueles
que os invocam se apresentam como guardiões legítimos dos interesses da
comunidade assim confinada.
São formas de
apropriação territorial que tentam definir as fronteiras e a legitimidade dos
interlocutores. Os estranhos, os "de fora" estariam, por definição,
desqualificados. São esses territórios que estão sendo desfeitos e, a partir
daí, novas territorialidades se configurando no mapa político.
No
lugar do seringal, território do patrão seringalista, emerge a Reserva
Extrativista, território dos seringueiros, e que hoje os transcende, sendo,
também, reivindicada pelas mulheres quebradeiras de coco de babaçu do Maranhão,
do Tocantins e do Pará, e já se desamazonizando,
através dos pescadores de Santa Catarina ou, ainda, influenciando a criação da
Reserva Campesina de Biodiversidade dos Chimalapas,
nos Departamentos de Oaxaca e Chiapas, no México.
*
FONTE: Homenagem por: Carlos
Walter Porto Gonçalves, professor no Departamento de Geografia da UFF.