Amazônia: Ecografia, Soberania Nacional e o assalto das madeireiras*

 

 

Orlando Valverde

 

No clássico livro "A Amazônia e a Cobiça Internacional", seu autor, o historiador Artur Cesar Ferreira Reis, presidente de honra da CNDDA, demostrou como a Amazônia brasileira foi, desde o século XVI, alvo da ambição das grandes potências mundiais. Com diferentes objetivos geopolíticos e econômicos, várias nações disputaram com os luso-brasileiros a ocupação e a posse dos imensos recursos dessa região.

A partir do século XVII, graças à visão geopolítica do Marquês de Pombal, à audácia dos bandeirantes e à sabedoria diplomática de Alexandre de Gusmão, o nosso país pôde assegurar para si o maior quinhão desse colossal estoque de recursos da Terra.

Efetivamente, a selva amazônica reveste, em estado natural, não só o norte do Brasil, mas também grande parte de países vizinhos desde o norte da Bolívia, as vertentes orientais dos dobramentos andinos até Vera Cruz, no México. Em larga faixa para leste, a hiléia cobre o sul da Venezuela, a totalidade das três Guianas, bem como as Antilhas.

As ações dos países imperialistas sobre a Amazônia brasileira se acentuaram durante a chamada "belle époque" — período entre a guerra franco–prusiana (1870) e a 1ª guerra mundial (1914/18) — quando um produto amazônico, a borracha, teve a demanda exacerbada nos grandes mercados.

A borracha, extraída da seringueira (Hevea brasiliensis) e do cancho, sobretudo do látex, (Caetilloa ulei), tornou a Amazônia brasileira a fonte produtora de 40% das pélas de goma elástica, no mercado mundial. Na pauta das exportações do Brasil, a borracha ocupou o 2º lugar em valor, logo após o café, desde a década de 1890 até 1913.

O surto da borracha silvestre, foi deflagrado, em conseqüência de prévias invenções, em particular a da vulcanização da borracha (nos EUA e Inglaterra). Este processo torna a goma elástica resistente e durável, permitindo o seu emprego em pneumáticos.

As inovações introduzidas por Henry Ford nos EUA, no decênio de 1890, para a produção em série de automóveis multiplicaram a procura para a borracha, cujo preço, em pouco tempo passou de menos de U$ 1.00 para a mais de U$ 3.00 a libra-peso.

A velha burguesia de Belém, de maioria portuguesa, passou rapidamente a controlar o comércio atacadista da borracha, negociando diretamente com as grandes empresas dos EUA e da Inglaterra e,de outro lado, fornecendo "aviamentos" (alimentos e artigos de uso) aos seringalistas, isto é os donos de seringais nativos. Do ponto de vista jurídico, estes eram reconhecidos nas faixas relativamente próximas aos rios navegáveis. A imprecisão desses limites nos interflúvios gerou numerosos conflitos entre índios e seringueiros.

A história do controle territorial

As plantações de seringais nativos mais produtivas da Amazônia ficavam no Acre, nas bacias dos afluentes da margem direita do Amazonas que descem dos Andes.

O descobrimento sobre a cartografia amazônica, no tempo em que A. de Gusmão elaborou o tratado de Madrid, de 1750, levou a que se julgasse que o rio Javari seria muito mais longo do que o é. Nessas condições, o paralelo ligando a nascente do citado rio ao Madeira deixaria o Acre totalmente fora da América portuguesa. Com isto não ficaram de acordo os seringueiros nordestinos que subiram os vales do Madeira, Turus e Juruá. Eles jamais souberam antes da existência do referido tratado; interessava-lhes apenas sangrar seringueiras e exportar as pélas de borracha para as "casas aviadoras" de Manaus e Belém.

Quando o governo boliviano instalou postos aduaneiros nos citados rios, a juzante dos seringais, os seringueiros, em maioria cearense, armados de rifles, expulsaram os guardas alfandegários e seus chefes.

Instaurou-se um clima de guerra na Bolívia. O próprio presidente do país, general Pando, afastou-se do cargo e foi combater os insurgentes na selva acreana. Jamais conseguiu vencer uma batalha contra o "exército" de seringueiros, chefiados por um guerrilheiro improvisado: o gaúcho Plácido de Castro.

Entusiasmado com seus êxitos bélicos, Plácido proclamou a República Independente do Acre. Criou-se assim, uma conjuntura histórica semelhante à da conquista da Califórnia pelos norte-americanos sobre o México.

Neste contexto o governo norte-americano propôs a fundação de uma companhia da carta ("chartered company"), intitulada "Bolivan Syndicate", com sede em Nova York, para administrar a região conflagrada. Esta foi a primeira tentativa grave e descarada para conquistar uma vasta e rica fração da Amazônia. Esta manobra de pirataria imperialista, fora precedida por outra bem sucedida, pelos ingleses nas ilhas Malvinas ou Falklands (Argentina), que até hoje permanecem em mãos de uma "chartered company" britânica.

O talento diplomático do barão do Rio Branco fez abortar o plano norte-americano negociando diretamente com o governo da Bolívia o tratado de Petrópolis, em 1903, através do qual o Brasil adquiriu o atual território do Acre por dois milhões de libras esterlinas, comprometendo-se também a construir a ferrovia E.F Madeira-Mamoré e dar direito de alfândega livre à Bolívia em Porto Velho, onde seus navios teriam acesso ao Atlântico.

A construção da ferrovia, de bitola estreita, entre Porto Velho e Guarajá-Mirim (360 km), levou muito tempo. Terminou em 1912 e custou um enorme contingente de vidas, vitimado principalmente pela malária. O governo brasileiro teve de mobilizar uma equipe de médicos, da qual participaram os higienistas Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, elaborando um programa para controlar a epidemia.

O trecho boliviano da estrada, que deveria chegar até Riberalta no rio Beni, nunca foi construído, visto que já se configurara a crise final da borracha silvestre.

A interferência do imperialismo inglês na Amazônia brasileira durante o período áureo da borracha se deu de maneira mais sutil e inteligente: em 1875, contrabandeou dezenas de milhares de sementes e mudas de Hevea brasiliensis. Das estufas de Rew gardens, em Londres, os clones foram transferidos para a Malásia, formando "plantations", subsidiadas, a princípio, pelo governo britânico.

Pouco tardou para que os holandeses trouxessem grande número de Heveas desse habitat asiático para suas ilhas vizinhas Sumatra e Java.

Clima quente e úmido, solos férteis, mão-de-obra abundante e também miserável, fácil acesso marítimo aos grandes mercados, grandes capitais e tecnologia avançada foram os fatores que permitiram a implantação da mais de 1 bilhão de seringueiras no sudeste asiático. E o preço das lâminas de borracha, nas fábricas norte-americanas, desceu a cerca de 5 centavos de dólar a libra-peso.

O colapso da economia da borracha, extrativa na Amazônia teve características dramáticas: as firmas "aviadoras" de Belém e Manaus faliram. Os seringalistas tornaram-se funcionários e políticos nas cidades; alugaram ou venderam suas mansões ou foram-se embora. Os seringueiros tornaram-se ribeirinhos, vivendo da pesca e de roças de subsistência; mas para eles a vida não mudou muito, já que eles dependiam economicamente dos preços impostos pelo barracão do seringal. Dali não podiam fugir sem saldar sua dívida. Cárcere privado, castigos corporais ou a morte eram ameaças constantes aos infratores.

Nesta sociedade injusta os impactos ambientais foram, no entanto insignificantes. No peru e na Colômbia, a agressão à natureza foi um pouco maior porque os "caucheros" abatiam as árvores para extrair-lhe a lacta, o que não se faz com a Hevea no Brasil.

No texto constitucional de 1946, o Congresso Nacional deixou clara a sua preocupação com o abandono em que fora deixada a imensa região amazônica. Ficou determinado que o governo federal aplicaria 3% de sua receita em projetos de desenvolvimento e ocupação regional. Assim, foi criado em 1953 um órgão oficial para esse fim: a SPVEA, mais tarde denominada SUDAM (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia).

A destruição da floresta

A mudança da Capital Federal para Brasília em 1960, envolveu em seu bojo um plano de ligações rodoviárias com todas as regiões brasileiras. Com o Sul e o Sudeste tudo foi fácil; mas com as regiões pobres não. A Belém-Brasília ficou completada em 1967; a Brasília-Acre no final dos anos 70; porém a rodovia para o Nordeste até hoje apresenta segmentos de circulação precária.

Talvez com objetivos mais publicitários do que geoeconômicos, o governo determinaria no início dos anos 70 a abertura da rodovia Transamazônica e a colonização de sua faixa entre Marabá e Itaituba, no Tapajós. Nos férteis solos de Rondônia Central, ondas sucessivas de colonos sem terra vindos de outras partes do Brasil ultrapassaram a capacidade dos técnicos do INCRA de assentá-los de modo organizado.

No sul do Pará e norte de Mato Grosso, a SUDAM financiou projetos ambiciosos de pecuária de corte, tendo em mira a exportação de carne. Esses projetos insensatos resultavam em: devastações maciças da floresta amazônica, massacres de trabalhadores rurais e índios, e também em desvios financeiros por total de cerca de 4 bilhões de dólares.

A reserva assegurada à Companhia Vale do Rio Doce na serra dos Carajás pelo governo federal, preservou a cobertura florestal sobre uma superfície de erosão de uns 600 metros de altitude, onde se concentra a maior ocorrência de minerais metálicos do planeta.

As técnicas conservacionistas ali desenvolvidas e o relacionamento com os indígenas vizinhos enchem de orgulho e alegria os visitantes; mas a privatização dessa estatal levanta tristes dúvidas sobre o futuro desse patrimônio.

Em nome de uma política neoliberal adotada pelos tecnocratas dos governos brasileiros, os recursos florestais da nossa Amazônia abrem-se agora à fúria devastadora de madeireiras transnacionais. São chamadas de "madeireiras asiáticas", porém nelas há capitais oriundos de muitos outros países ricos: EUA, Inglaterra, Alemanha, França, Bélgica, Holanda, Japão, China etc.

O assalto das madeireiras

As madeireiras comerciais da mata congolesa estão hoje muito escassas, por causa da longa exploração dos países colonizadores da Europa e da densa população nativa que ali vive.

Enquanto os países do sul e sudeste asiático permaneceram como colônias da Inglaterra, Holanda e França, dali surgiram os primeiros experimentos sobre silvicultura e solos tropicais, mas os novos e frágeis governos independentes não puderam contrapor-se à ganância e ao poder de corrupção das modernas madeireiras. Além disso, segundo esclareceu o ecólogo Philipp M. Zearnside, do INPA de Manaus, e conhecedor daquelas regiões, as matas dos trópicos asiáticos são mais homogêneas e mais facilmente acessíveis que as da nossa Amazônia.

As ilhas Filipinas estão praticamente desnudas de florestas. A erosão acelerada soterrou em lixo mais de 100 pessoas de uma favela em Manila. Terraços com arrozais que cobriam as vertentes montanhosas de Sumatra têm sido arrastados em corridas de lama, após aguaceiros monçonais.

Quando diretor do INPA, na década de 80, o Dr. Enéas Salatti, através da análise dos isótopos de oxigênio contidos na água das chuvas caídas em Manaus, comprovou que as matas a leste dessa capital até o Atlântico reciclam cerca de 50% das precipitações, antes de lá chegar. Portanto, se essa faixa florestal — que tem 1.500 km de extensão e mais de 100 km para cada margem do rio Amazonas — for arrasada os totais anuais de chuvas em Manaus (que eram de pouco acima de 1.800 mm), cairá a menos de 1.000 mm. E isto já aconteceu: as medições pluviométricas mais recentes em Manaus registram pouco mais de 1.300 mm/ano. As temperaturas, por seu turno, aumentaram.

O Dr. H. Weischert, da Universidade de Freiburg (Alemanha), é de opinião que 80% das chuvas caídas perto de nossa fronteira com o Peru e Colômbia dependem da reciclagem da floresta situada a leste, até o Atlântico. Hoje, essas precipitações que se elevam a cerca de 2.400 mm/ano, deverão reduzir-se a 480 mm apenas. Naquela latitude, isto eqüivale a um clima semidesértico.

As notícias provenientes de nossa Amazônia neste final de século são, porém, alarmantes. A gigantesca empresa madeireira WTK chegou a Manaus e lá desembarcou mais de uma centena de tratores pesados, cabos de aço, enormes caminhões, que seguiram para Itacoatiara, em frente à boca do rio Madeira, cujo porto foi equipado para receber grandes cargueiros para escoar a produção de grãos do Mato Grosso e de Rondônia, assim como madeiras comerciais.

Mas antes mesmo de chegar a Manaus, o grupo WTK comprou as serrarias e madeiras ali situadas: a COMPENSA, Moraes Madeiras e AMAPLAC.

Sabendo de antemão da abertura que o governo federal faria para as poderosas madeireiras transnacionais, o Sr. Amazonino Mendes, governador do Amazonas viajou para o Extremo Oriente (Coréia do Sul, Malásia e Indonésia) e já de retorno, recebeu no palácio uma delegação de empresários chineses. De fato, segundo o boletim INFOC, de economia florestal, o objetivo das gigantescas madeireiras alienígenas é o de elevar a exportação regional de madeiras a 100 milhões de metros cúbicos anuais, em lugar dos 600 mil metros cúbicos que a Amazônia produzia em 1995.

Deve-se considerar que, das mais de 300 espécies de madeiras comerciais da Amazônia atualmente conhecidas e classificadas, apenas pouco mais de 20 espécies são exportadas, com ênfase, no mogno (Sucretia macrophyla), nas ucuíbas (Virola opp), numerosos cedros (Cedrella opp.), maçarandubas (Manilkare opp). etc.

Degradação ambiental

Não há dúvidas de que a hiléia amazônica não resistirá a tão violentos impactos. Os processos de degradação ambiental nos trópicos úmidos agem rapidamente. Expostos à ação de copiosas precipitações sem o manto florestal protetor a erosão acelerada se desencadeia, seja sob a forma de ravinas (chamadas "voçorocas", em Minas Gerais) ou em lençol. Exemplos do primeiro caso encontram-se no vale do Pindaré (MA), entre Santa Luzia e Buriticupu, onde se formaram verdadeiras "bad lands" que provocaram graves desastres na Rodovia BR-272. Outra "voçoroca" de uns 30m de profundidade cortou a circulação rodoviária na Transamazônica, entre Altamira e Itaituba.

No nordeste de Roraima, em solo revestido de cerrado, montículos protegidos por crosta laterítica, com cerca de 1,50m de altura, se elevam entre terrenos aplainados pela erosão em lençol.

A luxuviação é o processo de arrastamento de nutrientes dissolvidos pela água de inflitração até o lençol freático, donde flui para os rios. Materiais finos, não sulúveis, das freações argila, silte a areia fina, são também arrastados pela água infiltrada até os horizontes inferiores do perfil, mudando a textura do solo. Este processo é chamado de iluviação.

Em decorrência da erosão, a sedimentação entulha os leitos dos rios. Isto é especialmente grave nos rios navegáveis. No Brasil colonial o Rio das Velhas (Minas Gerais), já foi navegável; mas os garimpos de ouro provocaram a erosão dos solos.

Agora, tais processos, em grau mais incipiente, estão generalizando-se na Amazônia. A concentração do ouro com mercúrio intoxica a fauna aquática e a qualidade do ar para os que trabalham nesse mister.

Os climas locais de grandes áreas devastadas são alterados, com o superaquecimento dos solos, a redução dos totais pluviométricos e a sazonalidade das chuvas. A ocorrências de densa névoa seca verifica-se hoje entre Porto Velho e Rio Branco, e entre Belém e Imperatriz, no final da estiagem, a ponto de interromper a circulação de aviões. Este fenômeno era desconhecido nessas regiões, antes de 1950.

O estágio final dos processos de degradação do ambiente das florestas equatoriais é marcado por perdas praticamente irreparáveis: o desaparecimento de espécies de seres vivos e, com eles uma infinidade de madeiras preciosas, frutos, fibras, flores, raízes, alimentos, perfumes, tornando mais pobre a vida humana no planeta. Povos da floresta: índios, castanheiros, seringueiros, cablocos ribeirinhos serão sem ela também extintos.

Diz a nossa "Constituição cidadã", de 1988, que os solos, matas, águas e minerais do Brasil, pertencem ao povo brasileiro. Sábios preceitos consagrados nesta Carta Magna têm sido, porém, repetidamente conspurcados por políticos corruptos atuais. "Quaisqual tendem"?!

Não só aos militares, mas também a todo o povo brasileiro cabe defender nosso inestimável patrimônio. O Vietnã demonstrou como fazê-lo; porém líderes autênticos, como Ho-Chi-Min e Giap não se "fabricam" da noite para o dia, nem tampouco sem a confiança irrestrita do povo da região.

Orlando Valverde, nasceu no Rio de Janeiro em 1917; foi geógrafo do IBGE até 1982, professor da PUC/RJ, geógrafo pesquisador no Centre d’Etudes de Géographie Tropical do CNRS em Talence (França), professor visitante nas universidades UCLA, em Los Angeles (EUA) e de Heidelberg, na Alemanha. Autor e co-autor de 20 livros de geografia. É presidente da CNDDA (Campanha Nacional de Defesa e pelo Desenvolvimento da Amazônia).

Biopirataria e acesso aos recursos da biodiversidade

Marina Silva

Uma lembrança nítida de minha infância, vivida num seringal do Acre, está ligada à chegada do comboio, uma tropa de burros que vinha a cada 15 dias, para trazer mercadorias de que não dispúnhamos, como sal e açúcar, e levar a produção de borracha. Em geral, vinha antes o noteiro, encarregado de anotar as encomendas de cada família e a previsão de borracha a ser produzida.

Quando era época da queda das sementes da seringueira, o noteiro sempre avisava meu pai: "não esqueça de mandar as meninas juntar as sementes para o comboio levar". Juntávamos dez, quinze quilos de sementes com muita animação, pois em troca ganhávamos balas, rapadura, "leite moça".

Uma vez perguntei a meu pai para quê servia aquilo. Ele indagou do noteiro que respondeu vagamente que devia servir para fazer sabão, a exemplo do que acontecia com as sementes de uma outra árvore. Cresci intrigada com essa história, porque sabíamos, com certeza, que a semente da seringueira não se prestava a fazer sabão. Depois, já fora do seringal, tive mais informações e tomei consciência do que acontecia. Aquilo que trocávamos por bobagens devia estar sendo passado para algum banco de germoplasma dos seringais da Malásia ou alimentando seringais de cultivo. Nem os próprios seringalistas do Acre tinham consciência disso, tanto é que faliram.

O Estudo do Problema

Essa experiência de vida é a base de minha motivação para ajudar a disciplinar o uso de nossa fabulosa biodiversidade, que já contribuiu para enriquecer tantos, menos o povo brasileiro. O meu compromisso político com o combate à biopirataria tem portanto uma raiz profunda, a de ter sido ingenuamente utilizada, como tantos amazônidas, em prejuízo próprio e do país.

O estudo do tema da biopirataria no Brasil permite dois grandes enfoques que são complementares mas representam ordens distintas de questões. Um diz respeito às ações clandestinas de retirada de recursos de nossa biodiversidade, como a que relatei. Em geral associamos esses atos à pilhagem promovida no contato direto com comunidades que detêm conhecimento original sobre propriedades de plantas ou animais.

Um bom exemplo é o patenteamento de saberes do povo Wapixana de Roraima e da Guiana inglesa, pelo químico Conrad Gorinsk, numa clara violação dos direitos das comunidades indígenas e da Convenção sobre Diversidade Biológica, de 1992, que fala explicitamente na repartição de benefícios com as comunidades locais, pelo uso de seu conhecimento.

Gorinsk patenteou na Europa e nos Estados Unidos o princípios ativos de plantas usadas pelos índios como estimulante do sistema nervoso central e antifebril. Apesar de ter passado muitas temporadas com os Wapixana, utilizando-os como guias para identificar plantas medicinais bem como para aprender seu uso, Gorinsk sequer pediu sua autorização ou propôs qualquer forma de remunerá-los.

Nesse caso, houve o repúdio explícito de povos indígenas reunidos em assembléia em fevereiro deste ano, apoio jurídico e político de aliados e recurso a tribunais internacionais. O que as comunidades cuja vida está diretamente ligada à biodiversidade reivindicam é partilhar a decisão sobre o uso do conhecimento que desenvolveram milenarmente. Também rejeitam patenteamentos cujo único objetivo é beneficiar interesses particulares ou de companhias transnacionais que disputam o controle do mercado mundial dos medicamentos.

O lado obscuro da biopirataria

O segundo enfoque traz à tona outra faceta da biopirataria, repleta de ambigüidades e zonas de sombras, relacionada à maneira pela qual o Brasil, por meio de seus poderes públicos, tem tratado a questão da regulação do acesso à biodiversidade. Esse enfoque ajuda a entender embates que se dão principalmente nos planos político e institucional, caracterizando subtrações e prejuízos ao patrimônio genético do país, muitas vezes sob abrigo oficial ou oficioso.

Desse ponto de vista, temos a biopirataria como prática que se infiltra pelas lacunas legais e ressalta o papel negativo que autoridades brasileiras vêm desempenhando, seja por negligência, seja por atitude que poderíamos chamar de pragmatismo irresponsável frente ao patrimônio genético do país, como demonstra o exemplo analisado a seguir.

O acordo celebrado entre a Associação Brasileira para o Uso Sustentável da Amazônia-Bioamazônia e a multinacional suíça Novartis Pharma, que veio a público no mês de junho último, tem o objetivo de coletar 10 mil microorganismos na Amazônia e identificar substâncias com potencial industrial.

A Bioamazônia é uma das primeiras Organizações Sociais (Lei 9.637/98), criadas como parte da reforma do Estado, para repassar a entidades privadas funções e recursos públicos em determinadas áreas, por meio de contratos de gestão. As OS foram vistas com certa reserva, apesar de seu potencial modernizador, por serem espaço que, sem adequado controle social, poderia prestar-se ao esvaziamento da responsabilidade do Estado e a negócios pouco claros envolvendo interesses públicos e privados.

A história da Bioamazônia, até aqui, mostra que as preocupações não eram infundadas. Ela foi criada pelo governo, com o objetivo declarado de desenvolver a biotecnologia e a bioindústria na Amazônia, no âmbito do Programa Brasileiro de Ecologia Molecular para o Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia (PROBEM). O governo tem 40% de participação em seu conselho e os restantes 60% são preenchidos por entidades científicas, empresariais e outras. No contrato de gestão assinado, o Ministério do Meio Ambiente tem a função de supervisor.

O acordo de cooperação com a Novartis foi assinado em maio deste ano, porém, sem conhecimento do Ministério do Meio Ambiente, conforme apontaram o próprio Ministro Sarney Filho e a Secretária de Coordenação da Amazônia, Mary Allegretti. Em nota à imprensa, em junho, o Ministro Sarney Filho afirma textualmente: "O Contrato de Gestão firmado pelo Poder Público em momento algum autoriza a Organização Social Bioamazônia a realizar acordos, convênios ou contratos de bioprospecção com bioindústrias. Nesse sentido, o Ministério do Meio Ambiente entende que o acordo firmado entre a Bioamazônia e a Novartis extrapola o estabelecido pelo Contrato de Gestão e por isso não tem valor legal." Ou seja, na prática, pode ser considerado um caso de biopirataria disfarçado. No entanto o documento do acordo tem a assinatura, como testemunhas, de autoridades da área econômica e de planejamento do governo.

Contra os acordos de FHC

Desde a sua divulgação causou reações de indignação em diversos setores. Na abertura da reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência-SBPC, em Brasília, a presidente Glaci Zancan criticou o acordo, afirmando que os recursos da biodiversidade brasileira não podem ser abertos às multinacionais da maneira como faz o governo de Fernando Henrique Cardoso.

As irregularidades são flagrantes e de certa forma chocantes, quando se constatam algumas das cláusulas. Por exemplo: as partes declaram poder "alterar o foco de sua cooperação parcial ou totalmente para um projeto suplementar relacionado ao isolamento de compostos naturais purificados de plantas, fungos ou microorganismos". Declaram ainda preenchidas as "obrigações financeiras e outras relativas à Convenção de Diversidade Biológica", quando se sabe que não existe ainda legislação brasileira internalizando os dispositivos daquela convenção.

E mais: para contornar o vácuo jurídico de que claramente padece, o acordo tenta se colocar sob o abrigo das leis de propriedade intelectual, quando na verdade está comercializando, em bases duvidosas, o patrimônio genético do país, que a Constituição define, no seu art. 225, como de "uso comum do povo", sob a proteção do poder público, que deve preservar a sua diversidade e integridade. Finalmente, as partes elegem Londres como o local em que seriam arbitrados eventuais contenciosos na aplicação ou interpretação do documento.

Trata-se, portanto, de um fenomenal atropelamento, pelo governo - via Bioamazônia - tanto dos princípios constitucionais vigentes de interesse público e soberania quanto dos esforços para a construção de um marco legal para o uso da biodiversidade brasileira, vista por muitos apenas como mais uma fonte de dinheiro, na lógica economicista e financista que domina o poder público federal atualmente no país.

As reações contrárias e as evidências irrefutáveis de irregularidades provocaram recuo, com a suspensão da vigência do documento. Mas, o lance seguinte confirmou o açodamento utilitarista da visão oficial sobre nosso patrimônio genético. Em lugar de reabrir a negociação em regime de urgência em torno de três projetos de lei de acesso à biodiversidade, em fase final de tramitação no Congresso, editou Medida Provisória (2052/00) criando um arremedo de lei para atender às necessidades formais para a continuidade de negócios na área.

Há oito anos, quando a Rio 92 aprovou a Convenção sobre Diversidade Biológica, estabeleceu-se um marco no reconhecimento do caráter estratégico dos recursos de biodiversidade e da necessidade de regular o seu uso, para o bem da humanidade e benefício de cada nação detentora. O Brasil deveria, a partir daí, ter o maior interesse em elaborar a legislação nacional sobre o assunto, dada sua privilegiada biodiversidade. Além disso é historicamente biopirateado e uma lei adequada seria o primeiro passo para estancar a sangria.

Em 95 apresentei projeto de lei para regular o acesso à biodiversidade. Até então, o Executivo nada fizera a respeito. A partir da iniciativa do Congresso, houve debates em todo o país (com audiências públicas em Brasília, São Paulo e Manaus) para os quais foram chamados os segmentos que tinham algo a dizer sobre as várias implicações do assunto, inclusive o governo. Interessante, os técnicos do governo compareciam e anotavam mas nada falavam. Em julho de 96, a Casa Civil da Presidência da República criou o Grupo Interministerial sobre Acesso a Recursos Genéticos, cujas reuniões eram fechadas.

O projeto tramitou no Senado em 97, tendo sido aprovado e enviado à Câmara em junho de 98, com substitutivo do senador Osmar Dias. Para garantir que não fosse modificado na sua essência, logo em seguida o deputado Jacques Wagner (PT/BA) apresentou outro projeto de igual teor. Em setembro, o governo apresentou seu próprio projeto que, pode-se dizer, pirateava em parte o nosso e se omitia sobre vários subtemas, a exemplo dos direitos das comunidades tradicionais e das sanções contra a biopirataria.

Começou então uma série de manobras pelas quais as lideranças do governo impediam o andamento desses projetos. Acompanhava o projeto oficial uma Proposta de Emenda à Constituição, transformando a União em proprietária do patrimônio genético do país, o que significa dar ao governo o monopólio dos negócios com a informação genética, sem interferência e controle social. Certamente por esse motivo, sempre pareceu estar mais empenhado no andamento da PEC do que em seu próprio projeto de lei. O episódio da Novartis mostra, na prática, o que se pretendia com a PEC.

A MP, além de desconsiderar o processo legislativo participativo e legítimo, em curso há cinco anos, confirma o desígnio deste governo de colocar empecilhos ao controle social das decisões sobre os recursos da biodiversidade. Centraliza num conselho interministerial o poder de aprovar o acesso aos recursos genéticos, alijando representantes da sociedade civil e tirando das comunidades indígenas e tradicionais a possibilidade de interferir na autorização do uso de seu conhecimento por terceiros. Regulariza indiscriminadamente (art. 10) contratos já firmados à data de sua edição (30 de junho), consagrando a biopirataria oficiosa. Afronta a Constituição no que diz respeito ao usufruto exclusivo pelos índios dos recursos naturais existentes em suas terras e cria grande instabilidade no caminho da transparência e da segurança para a regulação do acesso à biodiversidade, visto que transforma em instrumento de negócios uma MP, que pode ser mudada a cada 30 dias.

Esses acontecimentos demonstram que é preciso ir além da idéia corrente quando se fala em biopirataria. No Brasil, talvez mais grave do que a ação pontual daqueles que roubam na fonte informações de nosso patrimônio genético, seja a inação do poder público ou, o que é pior, o trato daquele patrimônio com avidez financista e visão pobre, de curto prazo, abrindo caminho para negociações de bastidores, no mínimo antidemocráticas e ilegítimas.

Assim, a biopirataria não é hoje fruto apenas da falta de fiscalização e de legislação. Ela resulta também de uma postura equivocada do atual governo sobre a utilização e conservação do gigantesco patrimônio natural do país - como florestas, água e solo - impedindo que a sociedade brasileira faça dele alavanca eficaz para um desenvolvimento que proporcione geração de emprego, renda e melhoria da qualidade de vida para todos.

Nota do Editor: recebemos do Professor Carlos Walter Porto Gonçalves um conjunto de textos sob o título Amazônia: os índios e a integridade do território nacional. Em virtude do tamanho publicamos as matérias centrais.

A versão original (50327 caracteres) será publicada no nosso site www.projetoadia.com.br, a mesma pode ser requerida através do E-mail revistanabra@aol.com

A R-EXISTÊNCIA DOS ÍNDIOS: tradição e modernidade

Carlos Walter Porto Gonçalves

O contexto de crise da década de oitenta possibilitou, para além do epíteto de década perdida, uma reflexão crítica sobre o modelo desenvolvimento que se vinha tentando implantar na Amazônia. Como parte dessa mesma crise há, como sabemos, a emergência de um novo padrão tecnológico que, por sua vez, estabelece uma outra relação com a natureza, pelo menos quanto aos seus meios, e não necessariamente quanto aos seus fins (que continuam a ser o lucro). A valorização da vida, como atestam a Teoria de Gaia ou a biotecnologia, ou a descoberta de novos materiais e procedimentos tecnológicos menos consumidores de energia e matéria prima, a consciência ecológica, enfim, ensejam novas e outras perspectivas para populações, como as indígenas, que dependem fortemente de uma relação íntima com a natureza.

Queremos ressaltar as implicações da revolução tecnológica em curso para as populações tradicionais, particularmente para as populações indígenas. Em primeiro lugar, as novas tecnologias de comunicação têm proporcionado que outros sujeitos sociais se expressem através de redes telemáticas. Assim, segmentos sociais até aqui invisibilizados vêm conseguindo ultrapassar as barreiras nacionais na defesa de direitos humanos básicos, em particular, denunciando massacres a que foram (e são) submetidos, cuja divulgação só se fazia quando não se podia mais reverter o quadro.

O caso mais significativo foi o do Jornal do Brasil que dispunha de uma entrevista com Chico Mendes desde o dia 8 de dezembro de 1988, quando ele alertava, exatamente, para as ameaças de morte que estava sendo vítima, e que só foi publicada no dia 23 de dezembro após a ampla repercussão mundial de seu assassinato. A imprensa brasileira repercutiu a repercussão da morte de Chico Mendes e não o seu assassinato. Hoje é possível fazer a informação circular praticamente em tempo-real e pressionar as autoridades nacionais a tomar providências. Paradoxalmente em países economicamente dependentes de apoios financeiros internacionais, como o Brasil, essas pressões, articuladas com organizações da sociedade civil dos países hegemônicos, têm demonstrado uma grande eficácia política.

As elites tradicionais brasileiras têm sentido esse efeito, particularmente, quando se trata de numa região tão significativa para o debate internacional, como a Amazônia, e se vêem constrangidas elas que, até aqui, conseguiram se integrar à divisão internacional do trabalho através da dilapidação dos recursos naturais e da super exploração do trabalho. Tudo indica que, tendencialmente, um novo quadro se estrutura, abrindo outras perspectivas para essas populações indígenas, outras populações tradicionais e todos aqueles segmentos sociais que propugnam pelos direitos humanos básicos, como o direito à vida, para não dizer dos direitos sociais, do que, até aqui, o MST tem sido um protagonista nacionalmente enraizado e internacionalmente antenado.

Sem dúvida, essa nova configuração internacional, no qual se realinham os diferentes grupos e classes sociais, está presente na reversão da tendência à diminuição da população indígena no Brasil. Eles que já foram 180.000, nos anos 70, são hoje cerca de 350.000 indígenas. Este é um fato que devemos sublinhar, pois desde a chegada dos portugueses ao Brasil só registrávamos extinção e diminuição de população indígena

Nas palavras de Jorge Terena: «Sem dúvidas, somos muito privilegiados. Podemos dizer que estamos bem melhor que alguns membros da sociedade em geral. Temos terra para plantar e colher a comida para a nossa sobrevivência, temos floresta para caçar, e em alguns lugares rios para pescar. Mas não são todas as comunidades que têm esses privilégios. A riqueza que todos temos é de não necessitarmos de comodidades como creche para os nossos filhos, cadeia para marginais, asilo para velhos porque pertencemos a uma sociedade onde todos os membros trabalham para melhorar a vida da comunidade. Mas por causa da exploração ilegal dos recursos naturais de nossas terras, sem ter nenhum retorno para a comunidade, estamos sendo afetados pela pobreza, pela destruição e pela negligência. As comunidades indígenas e suas Organizações, cansados de esperar pelo Órgão Indigenista Oficial começam a buscar meios próprios de melhorar a vida seja por intermédio de autodemarcação dos seus territórios, seja por projetos de auto-sustentação com atividades produtivas».

Sabemos que é antigo o interesse pelas "drogas do sertão" que levou para a Europa aquelas pélas (bolas) que contrariavam a lei da gravidade, a borracha, como se expressou, com toda a ignorância, um europeu à época. Esse interesse está hoje revigorado pelas novas vertentes do desenvolvimento tecnológico, como é o caso da biodiversidade com a biotecnologia.

As populações indígenas são portadoras de um acervo cultural extremamente rico, assim como de um enorme conhecimento a respeito da biodiversidade das florestas e demais ecossistemas da Amazônia e, por isso, mais do que um obstáculo ao desenvolvimento são, ao contrário, condição para o desenvolvimento de tecnologias de ponta, como a biotecnologia.

O antropólogo William Balée afirma que "os diferentes perfis dessas florestas podem ser vistos como artefatos arqueológicos, em nada distintos dos instrumentos e cacos de cerâmica, uma vez que elas nos abrem uma janela para o passado da Amazônia", num trabalho sugestivamente sob o título "Florestas Culturais da Amazônia" (Balée, 1987). Espécies como a castanheira, babaçu, cacau "selvagem" (Theobroma sp.) ou o ingá (inga spp.) são encontradas em biótopos os mais variados e são pistas importantes para estudar a própria ocupação humana da Amazônia.

O antropólogo Darell Posey, em estudo entre os Kayapó, admite a hipótese de uma categoria intermediária entre plantas domesticadas e plantas silvestres: a de plantas semidomesticadas. Fala dos períodos de longas caminhadas, com duração de até três meses, que as famílias Kayapó empreendem na estação seca, encontrando nas trilhas por eles abertas e em nichos por eles criados, ou por seus antepassados, o necessário à vida. É possível afirmar-se, com as pesquisas já realizadas, que as populações indígenas contribuíram enormemente para a composição da floresta tropical que, nesse sentido, deveria estar sendo denominada de Floresta Cultural Tropical Úmida.

Talvez ainda fosse interessante lembrar que as principais plantas de que se alimenta a humanidade hoje foram domesticadas pelos ameríndios: a batata (Solanum tuberosum), originária do Peru, onde são conhecidos mais de 7000 cultivares, e que é erroneamente chamada de batata inglesa; a mandioca (Manihot esculenta) e a macaxeira (Manihot dulcis); o milho (Zea mays), base da alimentação humana e animal em todo o mundo; a batata doce (Ipomoea batatas); o tomate (Lycopersicum esculentum); feijões e favas, como o amendoim (Arachis hypogaea); frutas como o cacau (Theobroma cacao), o abacaxi (Ananas sativus), o caju (Anacardium occidentale), o mamão (Carica papaya), o ingá (inga spp.), e muitas outras; amêndoas como a castanha do pará (Bertholletia excelsa); plantas estimulantes como o guaraná (Paullinia cupana), erva mate (Ilex paraguairensis), o fumo (Nicotina tabacum); plantas medicinais como a ipecacuanha (Cephalis ipecacuanha) de que se extrai o cloridato de emetina; a copaíba (do gênero Copaifera) usada contra afecções das vias urinárias; a quinina (do gênero Chinchona), que até 1930 era o único antimalárico disponível; até plantas de largo emprego industrial como a borracha (Hevea brasiliensis), ainda não totalmente substituída pela sintética, sobretudo no uso de luvas cirúrgicas e de preservativos de melhor qualidade; a palmeira carnaúba (Copernicia sp.) de que se extrai cera e a palha; o timbó (Theprosia sp.) que contém ingrediente de DDT - a rotenona - usado como inseticida, na medicina sanitária e na agricultura; além das plantas manufatureiras que os indígenas cultivavam ou utilizavam em estado silvestre como o algodão (Gossipium spp.); o caroá (Neoglaziovia varietata), espécie de bromélia que usavam para fazer fio e tecido e a piaçaba (Leopoldinia piassaba) de largo uso como vassouras, escovas, capachos.

Insistimos que, mais que os produtos de que, hoje, toda a humanidade pode usufruir, há todo um conhecimento da ecologia dessas espécies que envolvem modos específicos de apropriação material/simbólica da natureza, estamos diante de outras matrizes de racionalidade que são fundamentais nesse momento de busca de novas referências paradigmáticas para a relação homem-natureza.

O que se coloca, portanto, é a necessidade de novas relações dos homens e das culturas entre si, a começar pelo reconhecimento de que se tratam de interlocutores qualificados, e não de indolentes e preguiçosos; que essas populações indígenas são portadoras de uma cultura, e não são simplesmente da selva, no sentido de que são natureza que, sabemos, na cultura ocidental deve ser dominada. A Amazônia ainda guarda, com diferentes povos, essas outras matrizes de racionalidade que mostram a riqueza e a diversidade da espécie humana sob os nomes de Yanomami, Magüta (Tykuna), Makuxi, Kampa, Kayapó, Karajás, Tapirapé, Xavante, Kaxinauá, Wãiapi, Waimiri-Atroari ...

Tudo indica que o medo de manipulação das populações indígenas, sobretudo por forças externas, só se coloca para aqueles que continuam ignorando sua capacidade de elaboração política. Senão vejamos "O Encontro dos Pajés foi a maneira que encontramos para reunir a sabedoria dos nossos espíritos, pois é preciso que o homem branco saiba ouvir a nossa voz".

Chama a atenção de todos que é preciso fazer leis para proteger nossa sabedoria e os conhecimentos tradicionais contra a biopirataria, o roubo das plantas, do nosso sangue, das madeiras e dos minerais. Tudo o que protegemos durante séculos pertence ao Brasil e aos povos do Brasil . (...) Diante de tudo isso, os pajés assinam com suas mãos este documento afirmando seu compromisso coma vida, mas é preciso um compromisso do governo federal.

O compromisso de nunca abandonar os povos indígenas em nome do desenvolvimento errado que tem causado mais pobreza do que riqueza aos brasileiros. O governo brasileiro deve fazer um grande esforço para terminar a demarcação das terras. O governo do Brasil deve fortalecer suas relação com os povos indígenas, criando uma Funai forte e capaz de proteger as questões indígenas. Nós, os pajés, estamos rezando todos os dias e o grande espírito quebrará a força do inimigo, fazendo com que tenhamos terras e vida para todos os brasileiros, preservando o meio ambiente e a força espiritual" .

Há, ainda, uma outra dimensão ligada à revolução que enseja novas outras perspectivas para as populações tradicionais. Ela diz respeito àquilo que Pierre Lèvy chamou de tecnologias da inteligência. É sabido que a informática torna possível que estabeleçamos uma lógica não-linear com o conhecimento. Ao contrário da escrita que exige que obedeçamos à seqüência justaposta e linear de cada letra, de cada palavra, de cada frase, da seqüência das frases, dos parágrafos, das páginas de um texto, sabemos que, com um simples clique num mouse, podemos navegar de um assunto para outro, fazendo interconexões em rede, tal e qual fazemos numa conversa de bar, quase sempre não-linear.

O mesmo pode-se dizer dos saberes tradicionais, mais holísticos, não-lineares. Deste modo, as novas tecnologias de comunicação, até por permitirem expressar-se de modo não-linear, valorizam essa outras matrizes de racionalidade, emprestando-lhe uma dignidade que, cada dia mais, vem sendo reconhecida (vide documentos de cientistas da UNESCO, Paris e Veneza, 1986 e 1991)

Como as modernas teorias da comunicação nos esclarecem a informação é diferente do dado. A informação pressupõe que o dado tenha sido apropriado por uma matriz cultural que lhe dá sentido, que lhe dá significação, no caso das sociedades humanas, ou por um contexto teórico, no caso do campo científico. Sendo assim, não basta que exista uma espécie botânica, por exemplo. É necessário que ela tenha ganhado a dimensão de informação que, por sua vez, pressupõe uma cultura, ou uma teoria. Cada matriz cultural dos diferentes povos são, por assim dizer, softwares. Assim, junto com a biodiversidade que muitos vêm destacando, a diversidade cultural também ganha dimensão política. A tradição ganha a dimensão de suporte para uma outra modernidade.

É preciso não esquecer que, assim como no caso dos seringueiros, a problemática indígena envolve uma dimensão territorial que, embora não se esgote na problemática da terra, necessariamente a comporta, colocando-se, portanto, como uma das dimensões a serem contempladas na complexa questão da Reforma Agrária. A problemática indígena está indissoluvelmente ligada à questão agrária brasileira, de um lado, e, de outro, à nossa tradição de vermos os índios como não-cidadãos, como seres inferiores.

NOVOS CENÁRIOS, NOVAS POSSIBILIDADES POLÍTICAS

Vimos que onde se falava de "vazio demográfico" existe uma realidade complexa, constituída por múltiplos sujeitos portadores de diferentes matrizes de racionalidade, particularmente relevantes nesse momento em que mudanças de padrões tecnológicos e socioculturais se colocam em questão. A partir de agora, sem dúvida, a imagem que se tem da Amazônia não pode ser simplesmente mais uma imagem sobre a região, sem considerar os amazônidas como protagonistas ativos de seu presente/futuro.

Se a Amazônia, desde sempre, se colocou com uma construção tecida local/regionalmente no interior de uma ordem colonialista e imperialista e, portanto, desde sempre, internacional, hoje essa complexa relação se coloca sob novas mediações. Já não se coleta simplesmente as "drogas do sertão", o látex ou a madeira para exportar através das Casas Comerciais de Belém e Manaus. As diferentes configurações socioculturais da Amazônia já não são simplesmente "clientes" de "patrões". Hoje cada nova apropriação do solo, da terra, do subsolo, do minério, das águas, da fauna ou da floresta que grupos empresariais nacionais e internacionais tentam fazer há, de outro lado, populações tradicionais (e outros grupos sociais que com elas aprenderam a se relacionar com esses mesmos recursos) que se apresentam como protagonistas de um outro possível uso a partir de outras matrizes de racionalidade que não se medem, exclusivamente, por uma lógica econômica.

As novas tecnologias abrem a possibilidade para que essas populações, até aqui submetidas pelos mecanismos tradicionais de mediação política, quase sempre clientelísticos, se relacionem nacional e internacionalmente. A telemática, combinando informática com as telecomunicações, tem permitido que, em tempo-real, um massacre seja conhecido em Brasília, Londres, Paris ou Nova York.

O monopólio das articulações extra-regionais e internacionais já não é mais privilégio dos "de cima", como gostava de falar o saudoso Florestan Fernandes. E, agora, cada vez mais se percebe que o massacre é, na verdade, o epifenômeno de um conflito básico envolvendo matrizes de racionalidade distintas, enfim, diferentes culturas com suas formas e seus modos de apropriação simbólico-material da natureza. Deste modo, não é só a questão de a quem pertence a natureza que está posta mas, também, a questão das diferentes concepções do que seja a natureza.

Num momento como o que vivemos, onde novas (di)visões se fazem, onde tantos muros caem, é preciso que se vá além ideologia liberal que crê que o que caiu foi, somente, o Muro de Berlim. Caíram, também, os muros que isolavam essas populações de um diálogo direto com movimentos sociais extra-regionais nacionais e internacionais.

NOVAS MEDIAÇÕES POLÍTICAS: DAS ONGs E SUAS AMBIGUIDADES Sublinhemos que, até o início dos anos 80, antes de serem não-governamentais uma série de entidades se autodenominavam sem-fins-lucrativos. Como ambas denominações se definem pelo negativo — sem e não — essas designações nos falam mais pelo que negam do que pelo que afirmam. No primeiro caso — entidades sem-fins-lucrativos — é a idéia de lucro que se quer negar. No segundo caso — organizações não-governamental — é o governo, no limite é o Estado, que se quer negar. Não ver aqui uma forte influência das idéias liberais só se explica por esse poder mágico das ideologias.

Sabemos que a identidade de Organizações Não-Governamentais está ligada às tradições liberais, com fortes raízes na formação político-cultural norte-americana . Afinal, não-governo é a matriz do pensamento liberal. O crescimento dessas entidades, de início nos países centrais, revela, ao contrário do que se diz, a fragilidade da sociedade civil para sustentar e garantir as conquistas efetuadas nos marcos do Welfare State. A lentidão dos governos e da burocracia, expressão vaga que de tão repetida acaba por explicar tudo, é invocada para justificar a maior flexibilidade e capilaridade dessas outras formas de organização. Diz-se que elas devem ser, coerentemente, não-partidárias, posto que partido é uma instituição que visa o governo.

Subjacente a isso, sem dúvida, há uma mão de obra que configura um novo tipo de desempregado, qualificado com formação técnica e/ou universitária, uma criação da Terceira Revolução Industrial. Esse é o caldo sociocultural de onde emergem as organizações não-governamentais. Sua capacidade argumentativa invocando a racionalidade (do uso dos recursos naturais, por exemplo) é disso uma demonstração inequívoca. A crítica ao consumismo e ao desperdício, portanto, à irracionalidade do "sistema", da destruição da guerra alimentada pela criativa indústria bélica, não emerge dos setores inseridos no modelo de consumo de massa, ao contrário, parte daqueles que foram excluídos do sistema produtivo, mas detém um capital cultural capaz de analisá-lo criticamente posto que dominam seus códigos. Dominam as tecnologias da circulação de idéias, são mediadores e, a partir daí, já que não estão nas estruturas de produção tradicionais se colocam como mediadores críticos de interesses variados. Não nos esqueçamos que, pelo menos no Primeiro Mundo, os sindicatos eram parte do pacto fordista que configurava a sociedade de consumo de massa.

Não é difícil vermos aqui os ambientalismos. Não é difícil vermos aqui, também, se atualizarem mitos, como o da natureza intocada que precisa ser colocada a salvo da sanha desenvolvimentista. Não é difícil vermos emergir encontros amazônicos/planetários.

Desses encontros emergem, também, o que não estava necessariamente inscrito nesses diferentes vetores através dos quais uma reorganização societária de grande envergadura se vem pondo no mundo. Diferentes sujeitos sociais, até então tidos como desqualificados culturalmente para o debate, ganham visibilidade. Aquela violência que esteve no nascedouro do processo de constituição das relações sociais de corte capitalista na Europa, que pressupõe a separação do homem da natureza, como se deu com a privatização das terras comunais nos "Enclousures" na Inglaterra, ou com a simples queima de cabanas de camponeses enfim, com muito sangue, suor e lágrimas, se dá agora ao vídeo e em cores, em tempo-real. Um fax-modem faz com que a informação, à velocidade da luz, supere as longas distâncias amazônicas.

Como é da natureza do fato político se manifestar em público, na Polis, é preciso que se tenha direito à voz. Livres dos controles clientelísticos e com o apoio desses novos mediadores, novos sujeitos políticos emergem de velhas matrizes socioculturais na Amazônia e se apresentam como protagonistas para o debate. São outros ecos.

Na Amazônia, sem dúvida, o isolamento enseja uma condição muito favorável a que os "de baixo" fiquem à mercê seja do "barracão" do seringalista ou do fazendeiro, ou do marreteiro que vem pela estrada, ou do regatão que vem pelo rio, enfim do "patrão", dos "patrões". Não há dúvida que, na esteira de Chico Mendes e dos mais diferentes movimentos indígenas, outros sujeitos sociais emergiam à cena política para o que, sem dúvida, tanto as organizações sem-fins-lucrativos, como as não-governamentais, contribuíram, ao se inscreverem quebrando as mediações tradicionais, oferecendo-se, assim, outras possibilidades para que esses sujeitos sociais se constituíssem com personalidades políticas próprias.

Eis uma das razões que "os de cima" invocam para transferir para os "ecologistas" o perigo antes representado pelos "comunistas". Em uma Audiência Pública para avaliar a construção de uma estrada no Amapá podiam-se ver faixas e cartazes dizendo "Queremos Estrada e Não Estranhos".

Os "ecologistas" e as "organizações não-governamentais" são os novos "infiltrados", são "estranhos" às relações de dominação tradicionais. Sabemos a força desses recortes, dessas (di)visões do mundo social que criam barreiras, onde aqueles que os invocam se apresentam como guardiões legítimos dos interesses da comunidade assim confinada.

São formas de apropriação territorial que tentam definir as fronteiras e a legitimidade dos interlocutores. Os estranhos, os "de fora" estariam, por definição, desqualificados. São esses territórios que estão sendo desfeitos e, a partir daí, novas territorialidades se configurando no mapa político.

No lugar do seringal, território do patrão seringalista, emerge a Reserva Extrativista, território dos seringueiros, e que hoje os transcende, sendo, também, reivindicada pelas mulheres quebradeiras de coco de babaçu do Maranhão, do Tocantins e do Pará, e já se desamazonizando, através dos pescadores de Santa Catarina ou, ainda, influenciando a criação da Reserva Campesina de Biodiversidade dos Chimalapas, nos Departamentos de Oaxaca e Chiapas, no México.

 

 

* FONTE: Homenagem por: Carlos Walter Porto Gonçalves, professor no Departamento de Geografia da UFF.

 

 

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