Vivemos uma fraude na imprensa?*

 

 

  

Aloysio Biondi  (1936–2000)**

 

 

 

 

 

Entrevista concedida em 1999 a Sérgio Buarque de Gusmão, diretor do Instituto Gutemberg, Aloysio Biondi explica como e por que a imprensa brasileira deixou de fazer jornalismo quando se tratava de noticiar os fatos da economia nacional durante os oito anos de Fernando Henrique Cardoso na presidência [1994-2002].

Para Biondi, por interesses variados das empresas e dos próprios jornalistas, “a imprensa fechou a favor do governo do FHC”

 

 

 

Sérgio Buarque Gusmão: Numa entrevista que você deu à revista Imprensa, em agosto de 1988, perguntaram o seguinte: "Você é, há anos, uma voz discordante no jornalismo econômico. Isto não te cansa?". Dez anos depois, somos obrigados – lamentando pela imprensa – a repetir a pergunta: isso não te cansa?

Aloysio Biondi: Não, isto não me cansa. Acho que o jornalismo só tem sentido se for realmente para cuidar corretamente da informação, e não adianta vir com história de que tudo é relativo. A definição de ética não compõe essa filosofagem. Ou você tem ética, ou não tem. Eu até gostaria de falar o seguinte: na época da ditadura, eu fui violentamente contra a política econômica do Delfim Netto. Eu não era bem uma voz discordante, era uma pessoa que falava mais que as outras.

E havia até os irônicos que achavam que eu era agente provocador. Principalmente os partidos de esquerda moderada achavam que não se devia cutucar os militares daquele jeito.

Na década de 80, eu fui uma voz discordante, mas só que ao contrário. A esquerda caía em cima de mim porque, mais uma vez, não se trabalhava com os dados. Você tinha todo um ajuste na economia brasileira, você tinha investido maciçamente, você começou a ter saldo na balança comercial, e a esquerda era realmente catastrofista, ela não olhava esses dados. E cheguei a editor de Economia da Folha, e uma das coisas mais horrorosas da minha vida foi que na época alguns economistas de esquerda que eu admirava muito, que eu respeitava, com alguns até eu tinha tido um relacionamento pessoal, escreveram que eu tinha sido cooptado, e, eu colocava exatamente, que nos fins dos anos 60 para 70, que até certo ponto a esquerda ficou esperando uma grande crise econômica, e até certo ponto acabou motivando a juventude a ir para a luta armada, à espera de uma crise econômica, que faria o povo apoiar a luta armada. Um levante que não houve, porque estávamos numa fase de expansão da economia mundial, e as multinacionais estavam investindo nos países subdesenvolvidos, na época, e a esquerda tinha errado nesta avaliação.

Depois da crise dos anos 80, da explosão da dívida, tem uma coisa, assim, óbvia, a dívida do Brasil, do México e dos países subdesenvolvidos – como se dizia na época – explodiu, porque o presidente americano, Ronald Reagan, elevou a taxa de juros de 6 a até 18 e 21%, numa política para forçar a restruturação da economia norte-americana, e isto estourou os países pobres.

A partir de julho de 1982, o Reagan, começou a reduzir as taxas, e em outubro de 1983 tinham voltado aos níveis normais. Então com essa história do voluntarismo, de você ter uma tese, e não ver os dados... É engraçado porque todos os economistas de oposição, nas suas análises, atribuíam a crise mundial, a crise dos endividados, à elevação das taxas de juros do Reagan, e não admitiam que na medida que ele estava reduzindo, que elas voltavam para o nível anterior, na faixa dos 6 a 8%, a economia mundial, e a dos Estados Unidos, ia voltar a crescer. E eu escrevi isso na Folha e provoquei uma indignação na esquerda. Diziam que eu estava fazendo jogo contra a abertura. E eu estava fazendo exatamente o contrário, uma análise política, não voluntarista, e o tempo me deu razão logo em seguida.

Resumindo, eu não me cansei, eu, às vezes sou voz discordante quando todo mundo está prevendo catástrofe e eu não estou prevendo, mas é em cima de dados da realidade, porque eu sou contra o voluntarismo, e brinco sempre que "trabalhar dá trabalho". Jornalista econômico tem que acompanhar a conjuntura. Nas décadas de 1970 e 80, havia um desprezo, inclusive de jornalistas muito importantes, economistas muito importantes, pelo o que eles chamavam de "conjuntura arisca", porque eles já sabiam que o capitalismo ia acabar, e o negócio era ir para o boteco da roda e dizer que o capitalismo tinha acabado. Então para que você vai acompanhar o dia-a-dia? Acho que o equívoco do jornalismo de economia nessa fase decorreu de voluntarismo e preguiça de acompanhar os dados e os fatos.

SG: E como é que você acompanha? Tem arquivo, guarda os recortes?

AB: Eu levo três horas e meia para ler, realmente, a Folha, o EstadoGazeta Mercantil, e, em algumas fases, também Jornal do Brasil e O Globo. Mas, eu leio realmente. Até porque, hoje mais do que nunca, o que é importante está escondido, está no meio da notícia. Não adianta você bater na diagonal, ler manchete e ler o lide, porque aquilo ali é geralmente o contrário da verdade.

SG: Você tem falado muito isso, o importante vem no meio...

AB: No meio ou no pé.

SG: E por que isso ocorre?

AB: É uma manipulação. Por exemplo, há dois anos e meio atrás havia 2,5 milhões de inadimplentes hoje já tem 6,5 milhões de carnês em atraso. A média histórica é 700 mil, olha só. Os jornais de São Paulo divulgam também o número de carnês pagos, e os reabilitados, quem voltou a pagar. Nós chegamos ao ponto, de por exemplo, a Gazeta Mercantil, dar esse dado no pé da página de conjuntura, que retrata como é que está esse governo. A informação que foi para o lide foi que um número maior de pessoas pagou em atraso, e não o recorde absoluto de inadimplência. É muito clara essa manipulação. Eles [os repórteres] vão lá e o cara fala: esse mês caiu 20% mas no mês vem nós achamos que vai crescer 30%. Só que a entrevista foi convocada, para dar a informação concreta do que aconteceu no mês anterior e não fazer uma previsão que é um chute.

E a notícia é sempre construída assim: ‘Indústria espera 30% de aumento nas vendas de carro’. Então o título é a projeção otimista, e lá no meio ou lá no fim que você vai encontrar a informação verdadeira que é aquela que dá uma idéia do que está acontecendo.

SG: Você acha que a imprensa dourou a pílula do Plano Real?

AB: O tempo todo. Olha as vendas de Natal: não tinham sido coisíssima nenhuma recordes. A Gazeta Mercantil e o Estadão, o maior manipulador, deram que este era o segundo melhor Natal do Real, mas baseados apenas no número de consultas ao SPC, que em primeiro lugar, todo mundo sabe que é um dado, hoje, distorcidíssimo, porque nos últimos três anos um monte de setores – postos de gasolina, farmácias... – se filiaram ao SPC ou ao Telecheque. Então o crescimento é vegetativo, não indica aumento. Duas manchetes do Estadão, de janeiro deste ano e do ano passado, eram iguais: vendas recordes. No entanto desde 1995, as vendas de Natal na Grande São Paulo vêm caindo, de um ano em relação ao outro, a ponto de o Natal de 1998 estar 26% abaixo do Natal de 1995. E no período de Natal de todos esses anos, em janeiro, a imprensa deu que as vendas tinham sido maravilhosas. Quando os dados definitivos da Federação do Comércio saem, aí por volta de 10, 15 de fevereiro, os jornais não dão com destaque. Vêem que a queda foi de 7% ou 10% ou de 12%. Aí os jornais dão em uma coluna, dentro.

No ano passado, o presidente Fernando Henrique Cardoso, para variar, para gozar os catastrofistas etc. e tal, quando saiu o dado definitivo com a queda dos 12%, eu escrevi na coluna da Folha que isso tinha de ser uma dado com destaque, porque contradizia as manchetes otimistas do final do ano, porque estava levando inclusive a acreditar que estava tudo bem, e o governo, se vangloriar. Mas a mentira continua intocável. Este ano um gráfico da Folha mostrava claramente que nós tivemos pico em 1994, queda de 7% em 1995, em 1996 e o Natal de 1998 ficou 26% abaixo do Natal de 1994.

Chega o Dia das Mães, a consulta [ao SPC e ao Telecheque] sobe 30% e os jornais dizem que as vendas crescem 30%. Depois falam que caiu. Na Copa do Mundo [1998], na primeira semana de julho, as consultas do SPC subiram 29%, os jornais deram a manchete, e depois os caras venderam na verdade 20% a menos. A indústria precisou dar férias coletivas, e isso não foi retificado. Às vezes eu faço palestra para empresário, e o cara diz: “foi até bom você falar isso, porque eu estava achando que só a minha empresa vai mal, porque tudo que a imprensa publica está maravilhoso, todo mundo está estourando e não é a realidade que eu vivo...”.

SG: Você ouve muito isso?

AB: Em área empresarial sim. O cara diz: “até minha mulher fica brava, fala que só eu que sou fracassado...”.

SG: O quadro que você descreve é um quadro de fraude com a notícia?

AB: É um quadro de fraude. Vou dar dois exemplos que considero históricos: em outubro atrasado [1997], uma consultoria fez uma pesquisa sobre o endividamento do consumidor, já em função dos cheques pré-datados. Era um dado importante para avaliar o que acontecia na economia. O resultado da pesquisa mostrou, que em anos anteriores, o consumidor já tinha 20% do orçamento comprometidos com qualquer tipo de prestação: cartão, casa própria, carro, etc. E naquela brincadeira do pré-datado, em 97, dobrou esse comprometimento de 20 para 40%. Então a inadimplência já tinha passado dos 700 mil carnês para 3,5 mi a 4 mi. Na área de cheques sem fundos, você tinha antigamente 1,3 cheques a cada 1.000 e já está acima de dez. Quer dizer, cresceu praticamente dez vezes o número de cheques sem fundo, em proporção. Não quer dizer que aumentou o número de cheques, e que por isso aumentou o número de cheque sem fundos, não. É proporção.

Então você já tinha um quadro de recessão da economia em outubro do ano atrasado, com uma inadimplência incrível dos carnês e dos cheques sem fundo. Sai esta pesquisa, que seria um indicador das tendências de consumo, sobre o grau de endividamento das famílias, e o Estadão dá a manchete assim: “Real dobra o acesso do consumidor ao crédito”. O texto, aquela coisa, exaltando as virtudes do Real: ’agora com a estabilidade da moeda, as famílias já conseguem planejar seu orçamento, e elas, com isso, estão tendo mais chances de tomar empréstimo’. A pesquisa mostrava que o problema era o grau de endividamento das famílias. Foi transformada em mais uma peça laudatória do Real. É evidente que isto é fraude.

A outra é mais incrível... Eu acho que a gente teve um processo de lavagem cerebral, nos últimos anos, contra as estatais, contra o Estado, contra o empresário nacional. Vem desde o Collor a história de que ele é ineficiente, que ficou acomodado com o protecionismo, etc. ... Então, saiu um estudo magnífico, com o quanto do Fundo de Garantia foi roubado dos trabalhadores nos sucessivos choques. Os depósitos perderam nada mais nada menos que de 90 a 95% do valor. Este estudo mostrava exatamente o autoritarismo e a lesão dos direitos do trabalhador, que é o dono do depósito do FGTS. A manchete da Gazeta Mercantil, que tinha uma matéria maravilhosa da repórter, foi assim: ’Estado é mal administrador da poupança do trabalhador’, como se o Estado tivesse aplicado a poupança e sofrido prejuízo.

Na manipulação da informação, com essa técnica de não pôr no lide, pôr no pé a informação negativa, nós temos a inversão da verdade. Não é só manipulação, é fraude mesmo contra o leitor e contra a opinião pública.

SG: A imprensa atua como partido político, ideológico, com uma causa, e trai o seu papel de informar o contribuinte?

AB: Eu acho que a imprensa fechou a favor do governo do FHC. Primeiro, as empresas jornalísticas, como ia haver privatização da telefonia, e elas acreditam que o futuro seja da telemídia, da internet, que o jornal impresso será substituído a longo prazo pela telemática, como iam haver os leilões, como eram concessões, tenho a impressão de que as empresas jornalísticas quiseram apoiar o governo com medo de ficar de fora. Todas as editoras se candidataram.

Quanto aos jornalistas, houve o tal fenômeno que você viu em outras épocas também, que é o jornalista formador de opinião se envergonhar de não estar abalando a linguagem da superestrutura. Ele quer sentir psicologicamente que faz parte do círculo do poder e do círculo da modernidade. Alguns mais cínicos dizem que existe uma parte muito lucrativa nesta atitude. A contrapartida de você não fechar com o círculo do poder é você ter problemas de emprego.

SG: O sujeito deixa de ser jornalista quando passa a fazer isso?

AB: Eu até os chamo de deformadores de opinião. Uma coisa é o cara discutir se a taxa de juros realmente precisa subir 10% ou não. Outra é ele esconder da sociedade, como a imprensa fez o tempo todo, que o Real só não explodiu muito antes, por que o Banco do Brasil estava vendendo dólar no mercado, correndo o risco de prejuízos fantásticos. Os fundos de pensão, criminosamente, foram postos pelo governo para comprar e vender ações para segurar as bolsas. Quer dizer, quando um jornalista esconde esse tipo de informação, e a imprensa escondeu largamente nos últimos anos, não me venha com discussão filosófica de: ‘qual é a verdade?’. Isso é conversa fiada.

SG: Existe uma verdade factual.

AB: Existe um fato que eles estão, desonestamente, escondendo, encobrindo.

SG: E essa novela do Itamar Franco, que a grande imprensa acusou de ser o estopim que arruinou o Plano Real, chamando-o inclusive de ‘palhaço’?

AB: Isso é mais uma tremenda desonestidade da imprensa. Desde dezembro, o Brasil perdeu de novo 5 bilhões de [dólares de] capital estrangeiro. Vinha perdendo a média de 200 milhões por dia e no dia 29 de dezembro houve a saída de 1 bilhão de dólares. O que é essa saída? A imprensa tem confundido a opinião pública quando fala em ‘fuga de dólares’. Leva a sociedade a pensar que tinha um especulador aqui que tinha aplicado na Bolsa, num fundo de renda fixa, e que de repente começou a sair dólar.

Muito antes do Itamar, a gente perdeu 20 bi em setembro e outubro. Não tem nada a ver com o Itamar. Aí veio o acordo com o FMI, fez-se uma relativa calma mas em dezembro já voltou a perder peso. E todos os jornalistas da área, e os donos de jornais, estão cansados de saber que o certo seria dizer perda de dólares. Grandes empresas brasileiras, que tinham tomado empréstimos lá fora, ou os bancos não renovaram ou elas próprias, com medo de uma desvalorização, procuraram pagar os empréstimos antes da desvalorização.

Então, tem um dado de que ninguém mais fala, o que eu acho uma esculhambação: quando começou, por que o país perdeu dólar em setembro, outubro, novembro e dezembro? De um lado os bancos internacionais, realmente, já estavam parando de emprestar ao Brasil. O empréstimo que ia vencendo, títulos que iam vencendo, eles não renovavam. A empresa daqui tinha que pegar dinheiro, chegar do Banco do Brasil, comprar dólares e mandar para lá. A partir de certo ponto, com a crise brasileira e os títulos todos presos lá fora, as empresas brasileiras conseguiam empréstimo emitindo bônus, que é uma promissória depositada no mercado.

Com a crise, o valor desses títulos caiu, como o título do governo brasileiro caiu. Então teve empresa que pegou real, transformou em dólar, levou o dólar lá fora, para recomprar os próprios papéis das dívidas delas a um custo mais baixo, com desconto de 30% a 40%.

Uma informação que desapareceu do noticiário foi que na época – outubro, novembro – da discussão com o FMI, se dizia que os banqueiros internacionais, também, iam fazer um pacote de ajuda de uns 15 a 20 bilhões [de dólares] para o Brasil. Os bancos ficam dizendo que agora não estão renovando, porque vai haver um ‘pacotão’ do FMI, do governo, e eles dizem também vamos fazer um ‘pacotão’, então não tem sentido a gente ficar renovando esse empréstimos individualmente e depois entrarmos no ‘pacotão’, como eles dizem. Eles chamam de ‘disposição’ o total que têm emprestado para cada país. Então a ‘disposição’ com o Brasil vai ficar muito grande.

Só falam do Itamar, ninguém se lembra que os banqueiros foram cancelando os empréstimos para as empresas brasileiras, inclusive fora do prazo, em setembro, outubro, novembro e dezembro. Falaram que iam fazer um ‘pacotão’ para o Brasil, e não fizeram. O bilhão [de dólares] que saiu dia 29 de dezembro, uma parte desse bilhão foi a Globo que pagou antecipadamente um empréstimo dela. Então você tem, de um lado, os dólares que saíram muito antes da posse do Itamar. Antes de ele falar qualquer coisa, o Brasil tinha perdido 20 bilhões em setembro e outubro e perdeu mais 5 bilhões em dezembro. No dia 24 de dezembro o governo retificou os dados da balança comercial: dizia que tinha dado um buraco de 400 milhões [de dólares] em outubro, e retificou o buraco de outubro para 1 bilhão, e já divulgou o buraco de novembro, que era de mais 1 bilhão. Ele está falando de exportação menos importação. Apesar da restrição, as importações em novembro e dezembro superaram as exportações em 1 bilhão.

As empresas foram forçadas a pagar os seus empréstimos, ou, espertamente, já esperavam a maxi, por causa de todos esse indicadores negativos. Eu nem estou entrando nessa história de que teve vazamento, porque ao longo de três meses todo mundo estava esperando a maxi. Não tem nada a ver com o Itamar. Você via nos jornais da época que as grandes empresas – fabricantes de artigos de limpeza, detergentes, sabão e sabão em pó, ou de laticínios – estavam encurtando o prazo. Se antes elas davam trinta dias ao varejo, agora davam vinte e depois dez dias. O que é isso? Estavam todas fazendo ao contrário com o fornecedor. O cara fornecia a matéria-prima e se antes elas pagavam em um mês, estavam querendo pagar em dois. O que é isso? Estava todo mundo fazendo caixa, exatamente para comprar dólar. Não precisa comprar a cédula. Vai no mercado futuro e fala: ‘eu quero comprar 100 milhões, para me entregar no dia 25 de dezembro; estou pagando R$1,23’.

Qual é a vantagem dessa jogada? Eles já estavam esperando o dólar a R$ 1,60 ou R$1,70 na data do vencimento do contrato. Quem vendeu para esses grandes grupos foi o Banco Central, o Banco do Brasil, foi o governo. Toda essa jogada só aparece no meio das colunas do noticiário econômico, quando as manchetes deviam dar isso: “Empresas mandam dólares para fora para quitar suas dívidas”, “Bancos não renovam os empréstimos”.

Eu acho que o Itamar teve uma grande infelicidade porque o governo e a imprensa já tinham tentado dizer que a crise brasileira era produto da Crise Asiática, depois produto da Crise Russa, e agora, produto do ltamar. Deu o grande pretexto em termos de manipulação da informação do povo. É muito mais fácil o cara entender que o governador falou que não ia pagar e que por isso desabou.

O que Minas Gerais tinha a pagar lá fora eram 100 milhões de dólares. Itamar falou que não tem dinheiro para pagar, nem o interno e nem o externo. Então, veja bem, no caso da crise russa, por exemplo, que foi até dia 19 de agosto, a bolsa em maio e junho já tinha perdido 500 milhões [de dólares], em cada mês. Em julho, meados, de julho, o diretor do FMI, veio ao Brasil, deu uma declaração que só a Folha publicou em duas colunas na primeira página, os outros jornais praticamente não deram. Ele disse, dia 18 de julho, em Brasília, que o Brasil estava com grande déficit fiscal, 7% do PIB na época, e agora passou de 8%, e que estava recorrendo a capital especulativo para cobrir os rombos, e que ia ter que fazer o ajuste fiscal, porque de uma hora para outra, como eles falam, a percepção de mercado podia mudar e os capitais poderiam ir embora.

Percepção de mercado é o quê? De repente, os investidores, os banqueiros podem dizer: ‘esse país não vão conseguir pagar suas contas, então vamos cair fora, porque vai vir uma desvalorização e nós vamos ter prejuízo’. E esse diretor do FMI ainda fala que talvez o governo não conseguisse fazer o ajuste antes de outubro, por causa das eleições, quer dizer, o FMI, já sabia que o governo estava quebrado em julho. Ele falou assim ‘vocês vão rolando aí, para o FHC se reeleger, mas de qualquer forma vai ter que fazer’.

Todos os dados mostram que no final de maio o governo brasileiro não conseguiu vender. É assim: vão vencendo títulos e ele tem que vender outros para rolar, pagar os que estão vencendo. O governo não conseguiu vender os títulos. Banqueiro não queria comprar título com juro prefixado em 19% a 20%. Depois ia para 40% e o banco teria prejuízo, porque na verdade o banco não compra esses títulos com o dinheiro dele, ele é administrador de um fundo, que é dinheiro de todos os clientes que aplicaram nessa conta.

No final de maio o governo teve que mudar. Em vez de juro prefixado, combinado antes, o governo teve que aceitar, a pós-fixação que é uma espécie de correção monetária posterior, e passou a vender maciçamente títulos com correção cambial. O que é correção cambial? Havendo uma maxidesvalorização, o valor do título muda de acordo com o resultado dessa maxi. E com essa maxi que teve aí, eles vão ter um lucro alto.

Folha deu manchete de capa: “Banco Central cede ao mercado e abaixa juro pós-fixado”. Foi a única vez que isso saiu como manchete de jornal. Depois desapareceu, quer dizer, o governo já estava sem condições, já sabia que era uma bola de neve, o governo começou a vender os títulos dele por esses juros malucos. Já estava uma bola de neve porque na medida que tinha a pressão do Real, já tinha alta nas cotações do dólar no mercado futuro, as empresas já estavam mandando dinheiro para fora para quitar os empréstimos, os bancos já não estavam renovando os empréstimos, os investidores estavam fugindo das bolsas, os juros subiam naquela tentativa cega de segurar o dólar, com isso subiam os juros que o governo ia pagar sobre seus títulos. Então a bomba já está com o estopim aceso desde maio.

Neste quadro, a imprensa coloca nos ombros do governo Itamar Franco [de Minas Gerais] a responsabilidade pela crise...Você perguntou se a manipulação da informação não tinha chegado a um pouco de fraude. É claro, isso é uma fraude contra a opinião pública. Porque a imprensa continua a dar a idéia de que tudo teria sido diferente se não tivesse surgido o Itamar. Então na verdade, a crise continua a ser mal avaliada pela sociedade.

SG: O que aconteceu no dia 13, para que o governo tomasse a decisão de mexer na banda cambial?

AB: O governo foi forçado a mexer na banda porque a saída de dólar continuava na base de 200 a 300 milhões por dia. Eles vêm com cada história da carochinha, que os colunistas amigos do poder, esse caras que estão por aí, publicaram. Matérias de bastidores dizendo que já estavam discutindo, que iam adotar em março, ou talvez em abril, a mudança de banda. É tão história da carochinha que algumas providências que o Banco Central tinha que tomar agora em relação ao mercado ele não sabia. A própria ajuda do FMI, para estabelecer a política cambial, os caras dizem, vergonhosamente, que eles não têm uma estratégia. Veja bem, se você fala: ‘vamos mudar a banda em março’, os economistas sabem quais são os motivos para mudar, e a estratégia já prevê quais as possíveis conseqüências, como enfrentá-las, como minimizar os riscos...

Então é evidente que esse governo continuava apostando que segurava, que a partir do momento que veio o pacote do FMI, a verdade é essa, isso não está sendo lembrado, também, que se estourava, já que era uma injeção de 41 bilhões [de dólares], que 10 bilhões foram entregues imediatamente, que as reservas estavam em cima apesar das saídas. Aí, vamos dizer, o pacote dos banqueiros não vinha, porque eles sabem que a situação brasileira não se resolve nem com a maxi, então, você continua com o mesmo fluxo de sangria de dólares, ao contrário de tudo que se esperava que acontecesse – o que se esperava eu digo dos jornalistas governamentais, dos triunfalistas, de alguns colunistas.

A imprensa, os jornalistas econômicos, os jornais... fecharam os olhos à nossa trajetória, que era do caos. Não por voluntarismo, mas porque todos os dados mostravam isso. Eu acho que era a hora dos jornais, até pelos males que fizeram ao país, mostrarem a real natureza da crise, e mostrar que o que tem que mudar é o modelo. Por que mudar o modelo? Durante esse tempo todo a opinião pública foi convencida pela imprensa de que importar era muito bom, que importando obrigava o empresariado nacional a melhorar sua qualidade, produtividade e baixar o preço. Só que você viu, nas entrevistas que a Gazeta Mercantil publicou dos diretores de empresas de telefonia, eletroeletrônicos, siderurgia, nos dias da crise – para avaliar quem tinha muito prejuízo com a desvalorização do real, por causa dos componentes e peças importadas –, que quem importa menos, importa 85% das peças. Tem gente que importa 100%, inclusive. Fogão mesmo, a multinacional que comprou a tradicional Fogões Dako, hoje importa tudo. Quando você importa 85% de peças, significa que você não só destruiu a fábrica de peças daqui, como você importou a produção do metal, que era usado nas peças, plásticos, fios, borracha... todas as matérias-primas. E aí acho altamente edificante as entrevistas desses diretores, dizendo: ‘é realmente vamos ter problema porque nós importamos 85% ou porque importamos 100%’.

Em primeiro lugar, com essa abertura, o pessoal fica pensando que só foi trazido camiseta da Coréia, ventilador e óculos de Miami, e não é isso. Você tem uma abertura para a importação, que destruiu a produção local de peças e componentes e até matérias-primas também, de aço, de plástico, de borracha, de tudo.

O que se disse sempre? Que nós estávamos globalizando, e que era tendência mundial, que era preciso preparar nossas empresas para enfrentar a concorrência. Só que um dado que eu repeti ao longo desses quatro anos – e não precisa entender nada do que está aí, mas põe um dado na cabeça, um só. Ficam dizendo que a indústria nacional era superprotegida e por isso o governo reduziu as tarifas, impostos de importação. No Brasil, esse governo aí, reduziu a maioria desses produtos e não se paga nem um tostão para entrar aqui, e aí é o que eles chamam de tarifa modal. Tarifa modal é aquela é cobrada no maior número de produtos, no Brasil, a maioria dos produtos entra hoje sem pagar um tostão, ou 0% de imposto. No Japão – sobre quem todo mundo também é enganado, todo mundo acha que o Japão é liberal e tem o mercado aberto, e é o contrário, o Japão é ultraprotegido –, a tarifa que predomina lá é, quer dizer, um produto brasileiro que entrar lá, a maioria deles vai ter que pagar 16%, e na Coréia é 23%.

Então, nesse quatro anos, o governo e os meios de comunicação mentiram insistentemente, que era preciso reduzir os impostos, porque no resto do mundo era assim. É o contrário. Conseqüência disso, o tempo todo, o governo e os meios de comunicação desmoralizaram o empresário nacional dizendo que ele era ultraprotegido, quando os dados estavam para mostrar que não é verdade, lá fora é que se protege. Destruíram, por exemplo, o algodão, porque reduziram a tarifa para 0%. E depois colocaram em 3%.

Segundo lugar, as importações são financiadas em 180 dias, ou 360 dias, ou 400 dias, com juros de 8% ao ano, e esse governo não instalou um mecanismo de crédito para a empresa nacional, que é obrigada a pagar juros de 40% a 50% ao ano para enfrentar [os importados]. E tem mais: o Banco do Brasil empresta para você importar às taxas lá de fora, a 8% ao ano. Quer dizer, ele empresta para o produtor aqui à taxa de mercado de 40% ao ano, e empresta para quem quiser importar lá de fora à taxa de 8%.

A crise brasileira começa assim. Nós tínhamos um saldo de 12 bilhões de reais, ou seja, exportávamos 12 bilhões a mais do que importávamos, por ano. Era um dos maiores saldos comerciais do mundo, e passamos a ter um buraco de 8 bilhões por ano, com a destruição da produção local e dos empregos locais.

Em segundo lugar, as remessas de lucros e de juros – porque as multinacionais vieram para cá –, as remessas de lucros e de juros eram de 700 milhões de dólares por ano seis ou sete anos atrás, no ano passado essa remessa bateu os 7 bilhões de dólares. Quer dizer, cresceram dez vezes.

Inclusive, as assistências técnicas têm malandragem. O Severo Gomes, quando era ministro, combateu, mas as malandragens voltaram, autorizadas pelo governo, malandragem oficial. Então, quando é que o rombo começa? O rombo começa com aumento de gastos, com importações, com o buraco da balança comercial, com importações muito acima das exportações, com as remessas que cresceram fantasticamente, com os fretes que destruíram a Marinha nacional – e que você está pagando frete para navio estrangeiro, que foram para a faixa de 4 bilhões de dólares por ano. E o turismo alucinado, que, exatamente quando você tem esse processo de concentrar renda, tem gente ganhando muito dinheiro, viaja mais do que nunca e gasta mais do que nunca lá fora.

Quer dizer, você passou a precisar oferecer vantagens, para trazer dólar especulativo para cá, para cobrir o rombo concreto, que é o rombo causado pelas importações, rombo causado pelas remessas de lucros e dividendos, de assistência técnica das multinacionais, que é o rombo causado pelos juros provocados por esses capitais, e os fretes, e o turismo.

Nada disso está sendo colocado, a imprensa desviou a atenção nesse debate todo de novo. A desvalorização era um processo inevitável já devido a esses dados. Somando o buraco da balança comercial, mais as remessas etc., no chamado balanço de contas correntes, o buraco, hoje, é de 35 bilhões de dólares por ano.

Foi isso que levou à crise do Real, porque todo ano o Brasil está acumulando buracos de 35 bilhões de dólares por ano, que vão se somando a uma dívida que já existe. É um buraco verdadeiro, um empréstimo não resolve nada. E isso não está sendo dito. O próprio governo agora quer demonstrar otimismo. O governo inclusive alegava que ele não podia elevar os impostos de importação, inclusive por causa de compromissos assumidos com a OMC [Organização Mundial do Comércio], agora, o próprio governo está desmentindo a mentira que contou durante quatro anos, com a ajuda dos jornais. Está dizendo que não. Que nós assumimos o compromisso de 35%, no máximo, e que na média nós estamos só com 16% e que dá para subir aos 35% tranqüilamente sem quebrar nenhum compromisso internacional.

Veja a mentira. Primeiro que nossas tarifas não eram iguais ao resto do mundo coisíssima nenhuma, eram muito mais baixas. E segundo, dizer que não podia aumentar, pelo compromisso internacional. E agora está dizendo que é mentira, mentira deles mesmos.

SG: Como é que você analisa a cobertura depois da ruína do Plano Real? O que vem à tona é a inflação...

AB: A imprensa não está discutindo com a sociedade, de novo, como é que as importações evoluíram, e como que as remessas de lucros das multinacionais evoluíram. Você fez a desvalorização e daí, esses problemas não desapareceram, e ao concentrar o noticiário na possível volta da inflação, automaticamente a imprensa mais uma vez colocou a opinião pública do lado do governo, ninguém vai negar que o pavor da população é a volta da indexação, é a volta da inflação.

Agora, você podia dizer coisa assim, numa grande desvalorização, você pode ter até uma inflação de 20 a 30% no mês, não quer dizer que ela vai continuar nesse nível. Você deve se lembrar que, na Crise Russa, na primeira quinzena de setembro, houve um terremoto na economia, porque desorganizou, a população correu para fazer compra, eles estavam com problemas de abastecimento por causa de uma seca lá, então, teve uma alta de 43% na primeira quinzena de setembro. E a imprensa, que no caso da Rússia e da Ásia ela é todinha distorcida também, fica fazendo o jogo dos EUA, previa que a inflação russa seria de 100% ao ano. Só numa quinzena, foi 43% só que não foi [de 100%], foi de 58%. Depois de subir 46% numa semana, estabilizou e alguns preços até recuaram.

É óbvio, acho claro que a desvalorização ocorrida com o Real é exagerada, ela tem um componente especulativo sim, e acho que deve refluir para os níveis que o mercado falava, ou seja, uns 20 a 25%, ou 30%. Agora, se você não rediscutir o modelo todo, você vai ter daqui a um mês e meio, dois, a mesma coisa, e não vai parar com esses altos e baixos do Real. Por quê? Porque a gente sabe que com esses juros aí, o teto do governo vai estourar, mais ainda.

SG: Você está dizendo que a imprensa, de mãos dadas com o governo, coloca o foco na inflação, porque é um fantasma do povo, e não apresenta nem discute as causas do problema?

AB: Sim. É muita sacanagem dizer que o frango subiu 7% [devido à crise] sendo que ele não come ração importada. Em primeiro lugar o frango estava a 90 centavos [de real] no atacado em dezembro; em janeiro tinha despencado, e por causa da recessão e tudo mais estava 60 centavos, depois voltou para 80, que é o preço dele em janeiro do ano passado. Dizer que as empresas não podem reajustar seus preços, aquelas que têm coisas importadas, isso mais uma vez é aquilo, é querer negar...

A meu ver, a atitude do governo tem que ser: a gente teve uma desvalorização, a gente chama de crise, a gente trata com grandes problemas que levaram o mercado a se retrair, agora vamos corrigir tudo, e eu, governo, presidente da República, eu entendo que a desvalorização causou problemas às empresas que tinham dívidas, porque as grandes empresas, fizeram aquilo que nós estávamos falando agora, essas se protegeram, essas lucraram, e as outras não. Então, qual a obrigação do governo? É minimizar os efeitos da desvalorização sobre as empresas. O governo tem que ser parceiro da sociedade. Em todos os segmentos, tem que ser parceiro da sociedade, dizer, ‘vamos ver o que nós podemos fazer’, não é chegar e fazer ameaças para o empresário, como se ele estivesse especulando.

É obvio... Se o empresário tem aumento de custo por causa dos componentes importados, eu nem vou entrar naquela coisa complicada de falar de preço relativo, que quando tem uma inflação todo mundo quer recompor o seu poder de compra relativo, ninguém quer abrir mão, um ganhou e eu perdi, isso aí já vai complicar. Mas quem teve aumento direto de custo, tem que ir no governo, discutir com ele como reduzir... Esse setor teve um problema de aumento, então vamos reduzir primeiro para ver o tanto que ele importa, para ele sofrer menos e vamos dar uma vantagem para ele, uma linha de crédito para ele, para ele não pagar os juros de mercado. Juntos. Não, simplesmente, juntar numa caça às bruxas, acusando os empresários de ser especuladores.

SG: Como se não tivesse nada com isso?

AB: Vamos até esquecer o passado, falar: ‘ah, dedicaram quatro anos e perderam tudo’. Isto não interessa, o que interessa é: o que estava errado? O que precisar ser mudado? O que nós vamos fazer para minimizar os efeitos desses erros todos?

Veja bem, com essa mania de ser otimistas, o governo diz e a imprensa repete, que as importações vão cair 10%, e as exportações vão subir 10%, e que com isso esse rombo do Brasil de 35 bilhões por ano, este ano cairia para alguma coisa de 16, 18 bilhões. Aí, mais uma vez, é ignorar a realidade.

Como a gente disse há pouco, as importações maciças que as multinacionais fazem hoje, chegam a 85%, a 100% do teto dos componentes importados. Essa política de importação de uma fábrica dessas não depende do Real, depende de uma decisão da matriz, é ela que fala o que você vai comprar. A Fiat que fala: ‘você vai comprar peça da nossa fábrica da Argentina, vai comprar volantes da nossa fábrica de não sei onde’. E até talvez nem seja justo falar da Fiat, porque ela é quem vem cumprindo os contratos de exportação, ao contrário das outras...

Então, primeiro, você não ter um controle dos índices de importação dessas empresas significa que, mesmo com o Real desvalorizado, elas não vão deixar de importar as peças que a matriz mandar só porque o Real foi desvalorizado. E tem uma coisa mais grave ainda, porque essas empresas todas têm tidos financiamento do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], para instalar fábrica aqui que não é fábrica nada, é tudo linha de montagem.

SG: Pelo que você fala do BNDES, os escândalos, ali, não são fitas.

AB: Não. O BNDES liberou em dezembro 220 milhões [de reais] para um grupo que comprou uma ferrovia no Brasil, esse grupo tinha entrado num consórcio, comprou a Fepasa [Ferrovias Paulistas SA] com 20% de entrada, ele tinha 10% do valor total, ou algo como 6 milhões [de reais], ele pegou um empréstimo de 220 milhões. Acho que o Congresso tinha que saber... Já a Light deve 1 bilhão [de reais] para o BNDES, a Telefônica deve 500 milhões.

O que a sociedade tem que saber é que essas políticas têm que mudar. Quando tem financiamento no Nordeste, a Sudene [Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste] libera recursos com base em um cronograma de execução de obras. Em um empréstimo de 100 milhões de reais, a empresa prevê que vai fazer o alicerce da fábrica em um mês e que isso custa 10, quando ela termina de fazer o alicerce, ela recebe esses 10. Então, o governo não pode liberar 220 milhões de uma vez na outra situação. Ele já nem devia emprestar para esse grupo que pretensamente comprou a ferrovia. E, enquanto isso, o governo cancelou este ano o financiamento de 250 milhões de reais para a compra de sementes para 4 ou 5 milhões de famílias plantar. O governo tirou esse financiamento.

Esse problema do ajuste fiscal, eu gostaria de falar alguma coisa dele, mais à frente. Então, é um governo que empresta 220 milhões para um único grupo que teoricamente comprou uma ferrovia estatal e que cancela verba para financiar 4 milhões de agricultores, com verba de 250 milhões de reais, que voltariam em 6 ou 7 meses, tão logo a colheita fosse feita. Além da política do BNDES, de emprestar para quem monta a fábrica para imediatamente ir importando tudo, sem nenhum condicionamento de que ele tem que usar tanto de peça nacional.

Veja bem, logo depois da crise, o Japão já determinou a venda de equipamentos para uma refinaria aqui. A Espanha também estava oferecendo financiamento ligados a programas de irrigação para o Nordeste... A gente tem importação de ventiladores, badulaques, essas coisas. Nós temos uma política viciada por importação, e quando o BNDES empresta para empresas que tem 100% de componentes importados, ou 85% de importados, vão exigir que elas façam encomendas aqui? Outro absurdo: saiu uma nota nos jornais há uns três dias, as montadoras [de automóveis] não estão cumprindo as metas de importação delas. Acho que o Sindicato dos Metalúrgicos também devia falar. E, agora, saiu uma notinha que o BNDES vai financiar as exportações delas. Simplesmente uma loucura. Por quê? O país está precisando de dólares, eleva juros para isso, e a montadora filiada a uma multinacional que tem condições de trazer empréstimos do exterior para cá, para financiar as próprias exportações, o governo isenta de trazer dólar para cá?! Nós não temos uma política econômica até agora, a verdade é essa. Em vez de você obrigar a montadora a trazer, ela, o financiamento para exportar, o BNDES está estudando o financiamento para ela.

Então primeiro, enquanto você tiver esse mecanismo de crédito para importar e pagar em até 400 dias, é muito mais grave do que se pensa. Porque no caso do trigo, por exemplo, a gente produzia 6 toneladas, caiu para 3, para 2. Então hoje, a gente importa 6 milhões de toneladas, a gente está produzindo o equivalente a 1/4 do que a gente consome. E mesmo assim você tem trigo nacional encalhado. No ano passado produziu só 2 milhões de toneladas, para o consumo de 8 milhões, e 1 milhão ficou encalhado por que porque eles compram o trigo, vendem, fazem a farinha, giram o dinheiro aplicam no mercado financeiro e depois que vão pagar para a Argentina. Então enquanto você tiver esse mecanismo de financiamento para o cara lá de fora vender para a gente, a produção nacional, vai ficar ou encalhada, ou simplesmente substituída pelo estrangeiro, porque o nosso empresário não tem como concorrer com os mecanismos de crédito.

O BNDES também vai financiar as operadoras que compraram as telefônicas, mesmo que elas usem 70% de peças importadas. Para as parceiras que vêm explorar petróleo, o governo deu isenção total de impostos para trazerem equipamento de fora, em vez de fazerem encomendas para a indústria daqui. É um setor que estão falando de investimentos de 5 a 9 bilhões de dólares por ano. Quer dizer, telecomunicações e petróleo, que são os dois setores que têm alguns investimentos grandes previstos nesses anos, que podiam servir para colocar encomendas para a indústria nacional e puxar a economia e você está permitindo importação, e até financiando essas importações e até dando perdão dos impostos, para essas importações. Então, acho, altamente problemático que, mantidas essas diretrizes, as importações caiam 10%.

Na área agrícola, você tem que importar, e vai ter que continuar tendo que importar este ano: arroz, feijão, milho, trigo. Uma coisa que até a mim escandalizou, há quinze dias teve o primeiro desembarque de cacau importado na Bahia. Já estávamos importando dos países asiáticos mais da metade do coco usado aqui, para fazer leite de coco. Agora estamos importando cacau também. E nós estamos importando por que não tem o suficiente aqui dentro, então, como é que você pode falar que as importações vão cair 10%, quando em determinados setores, o governo está apoiando a importação, como é o caso de petróleo, telecomunicações e das energéticas também?

Houve muito zum-zum-zum com as importações de medidores feitos pela Light, no Rio, ela também não comprou nada aqui. Se o próprio governo está apoiando as importações, e se não cria um mecanismo para a produção nacional poder concorrer em termos de prazo e taxas de juro e crédito lá fora, essa queda de 10% que estão prevendo é altamente problemática. Isto tinha que ser colocado para a sociedade discutir a política de financiamento, não só do BNDES, como do Banco do Brasil, da Caixa, para incentivo da produção nacional.

Nas exportações o mesmo raciocínio vale, sempre foi assim, as multinacionais decidem qual filial, de que país, vai vender o que, para que país. E com essa abertura você tem a presença maciça... tanto que eu já citei também, no caso das exportações de automóveis as nossas caíram coisa de 40% a 50%, de outubro a dezembro, e a do México só 1 %. Quer dizer, você tem mesmo uma capacidade ociosa de 40% na indústria automobilística mundial. Mas, além disso, dentro desse quadro não adianta a gente reduzir preços e impostos, porque quem vai exportar é a filial que a multinacional decide, e o México perde dos Estados Unidos.

SG: A lei diz que o governo obriga a indústria a cumprir a cota acordada?

AB: Pois é, e eu acho que os sindicatos deviam estar falando nisso, porque eles estão falando muito no emprego deles e etc. Então, você não tem uma política exportadora. Eles anunciaram o apoio via Sebrae, para a pequena e média indústria exportar, mas anunciam uma taxa referencial (TR) e mais 12%. Então, enquanto você tem mecanismos lá fora, para os caras importarem para nós, aqui você tem o contrário, a gente continua sem condições de exportar realmente.

SG: Vamos falar do ajuste fiscal?

AB: É o seguinte há um consenso aí na mídia, de que o Brasil precisa fazer um ajuste fiscal, esse ajuste inclui cortes grandes de gastos na área do governo, e dinheiro, por exemplo, de contribuição de aposentados... Você acha isso correto?

Ajuste fiscal só tem dois lados: da arrecadação e dos gastos. Eu, inclusive, vi uma comentarista econômica da Globo falando que todo começo da crise é porque o governo gasta demais, que perdeu a confiança do investidor internacional e por isso ele fugiu.

SG: Você não identifica, mas eu vou identificar. É a Miriam Leitão?

AB: É. Mas eu acho injusto falar só no nome dela. Eu acho, honestamente, porque além dos comentaristas econômicos, você sabe que a edição dos jornais de TV, a edição dos jornais, a gente acabou de dizer que os jornais escondiam as coisas, os jornais davam no lide e na manchete o que não era, escondiam no texto o que era importante...

SG: Ou seja...

AB: Eu acho que aí é uma injustiça, porque todos se comportaram de uma maneira desonesta. Então não vale citar uma pessoa. Se bem que eu achei que, há três dias, a insistência dela nessa versão, é superar a própria desonestidade porque o buraco é em dólar e não foi por causa do Dólar que o Real desabou.

Veja bem, quando eles falam em cortar gastos, que o governo não cortou, é como se o governo fosse um ser abstrato que cortasse, que vivesse com muito dinheiro e pudesse cortar, só que o governo é sinônimo de serviço público, quando o governo corta... Todo mundo fica pedindo corte, sem ver que nós já estamos numa situação... Já cortaram, por exemplo, algo que estava previsto para alguns Estados, lá para março e abril, já cortaram as frentes de trabalho desde já. E, aí sim que é a política de corte boa, na Polícia Federal, a Folha publicou recentemente uma matéria de que, na Polícia Federal do Rio, de 16 telefones, 12 estavam cortados; de carros, de 40, tinha só cinco em funcionamento... Cortaram dinheiro de sementes da agricultura, que é o que vai ser plantado, que é o que vai gerar a safra, que vai criar produção, emprego, arrecadação, consumo, renda, consumo. Então o que precisa não é desse ajuste histérico, desse corte histérico que eles estão pregando, é ao contrário. Você cortou 5 milhões [de reais] da Secretaria de Receita Federal e perdeu 800 milhões, ou 600 milhões de arrecadação do Imposto Territorial Rural.

Então, quando insistem que o Estado tenha que cortar, você já está no patamar do corte burro. A Polícia Federal é incumbida de combater fraudes com dólar, fraudes financeiras... E a Polícia está completamente parada, a Polícia Federal de Brasília já teve telefones e luz cortados, porque não tinha recebido as verbas para pagar as suas contas.

Então, não é a discussão que o Estado tem que reduzir seu tamanho, porque isso já estão fazendo, é a destruição do pouco que a máquina governamental devia ter para arrecadar até para exercer o seu papel de governo.

Então você corta dinheiro para as sementes, para a saúde, para os hospitais universitários, para a caridade, para a Polícia Federal combater fraude, para o mínimo de serviços essenciais que ele teria de prestar, e, nessa burrice, inclusive, vai se afundando.

O que você tinha que fazer para aumentar a arrecadação? Você tinha que fazer ao contrário, tinha que ter feito ao longo dos quatro anos. Aliás, no ano passado, a Receita Federal tinha uma porcentagem das multas aplicadas aos contribuintes que era destinada à organização da Secretaria da Receita Federal. Aquela greve dos fiscais não foi só por causa dos salários deles não, é porque a equipe econômica tinha, inclusive, transferido para o Tesouro o dinheiro que era arrecadado com essa parte das multas que entrava especificamente para reorganizar a Secretaria da Receita Federal e que estava para instalar computadores, a parte de informática, se modernizar.

Você teve dados recentes que o Everardo Maciel [ex-Secretário da Receita Federal] andou mostrando, que 90% das grandes empresas e dos grandes bancos não estavam pagando o Imposto de Renda. São brechas legais, que acabam ficando por aí para serem usadas, que são temas de seminários chamados como de planejamento tributário, e, na verdade, é seminário para as empresas aprenderem como aproveitar a brecha da lei para não pagar, para sonegar.

O ex-ministro Roberto Campos, inclusive, numa longa defesa de coisas diretas, acabou falando da necessidade de combater a sonegação, na área de Previdência, pois hoje 50% dos trabalhadores não estão recolhendo para a previdência. Ou seja, a posição dele coincidiu com a posição defendida pelas oposições, pelo Lula, pelos economistas do PDT, PT. A posição deles é de que, em vez de você confiscar 5% do rendimento do funcionário público, você devia começar a combater a sonegação – em vez de ficar falando tanto de reforma da Previdência e tirando direitos adquiridos do trabalhador. Eu até acho, que nesse momento, e isso é só uma idéia a mais, isso dá um esquema para as pessoas pagarem só 20% é claro que elas também teriam serviços e aposentadorias, no meio tempo, proporcionais a isso, mas essas pessoa começariam a pagar e você teria dinheiro no cofre da Previdência rapidamente. Então, poderia se buscar alguma criatividade nisso daí.

E o Imposto de Renda é absolutamente injusto tal como ele está, só com duas alíquotas [15 e 27,5%]. Os ganhos de capital foram altamente beneficiados nesses últimos dois anos, com várias reduções de impostos e até com a isenção de impostos. Na importação, o governo dando isenção de impostos para importados petrolíferos. E a Receita sem conseguir se modernizar...

A própria reforma Patrimonial, na campanha do Collor, a Zélia já falava nisso. São 3 milhões de imóveis, principalmente terrenos, além dos prédios abandonados no centro [das grandes cidades]. Além dos terrenos de Marinha, no litoral, ao longo de rios, as ilhas, são todos do governo, as pessoas para construir casas ali tinham que pagar uma espécie de aluguel para o governo, e quando vendessem pagar uma taxa sobre o valor do imóvel para o governo. Melhor dizendo, o terreno é da União, é nosso. Não é do governo, é da coletividade. Calcula-se em 4 milhões esse lotes. Inclusive a ilha do Pitanguy [cirurgião plástico de renome], aquelas coisas todas. Isso estava já no programa econômico na campanha do Collor. A divisão do Patrimônio da União, que devia cuidar disso, o ano atrasado ela ganhou um micro, eu vi no jornal, um micro! Deve ser uma seção de um homem só, que tinha um micro para começar a cadastrar os 4 milhões de imóveis e qual era a situação deles, e aí a gente vê a consequência disso. É uma coisa que eu citei recentemente, a casa do governador de Sergipe, que o Presidente foi passar aquelas férias que ele acabou interrompendo por causa da queda do Real, a mansão é em terreno do governo, terreno marinho. E o governador de Sergipe, o Albano Franco, ex-presidente da Confederação Nacional da Indústria, com a casa que ele comprou, que está no terreno do governo, não paga nada dessas taxas que devia pagar, e quando ele comprou não recolheu as taxas que devia.

Então você falar em ajuste fiscal, via corte... Cortar mais o quê? Você escamotear que os juros é que estão provocando esses grandes rombos, e os juros foram elevados por causa do Dólar, tudo começa no buraco em dólar, e não ao contrário.

Você tem que defender, como os fiscais do Imposto de Renda defenderam o imposto na greve deles, eles queriam que fossem mantidas as verbas que eram da Receita, para aplicar na modernização da Receita, para combater a sonegação.

Falar em ajuste fiscal nessa base de cortar mais, cortar mais o quê? Já tem gente morrendo de novo, aí em filas de hospital, já não tem dinheiro para agricultura, não tem dinheiro para a Receita Federal. Esse ajuste, em resumo, infelizmente, é uma ânsia de desgoverno de quatro anos que a gente tem, mas agora era hora de, já que a crise chegou, rediscutir tudo, e você não está vendo o governo discutir com nada. No confisco de 25% do servidor aposentado, eu acho que só uma sociedade que perdeu um mínimo do senso de decência – e solidariedade –, aprova uma coisa dessas, manipulada. Foi muito escondido da opinião pública que o funcionário já recolhe sobre o integral, enquanto a gente paga sobre 10 salários mínimos. A Previdência do resto dos trabalhadores é sobre 10 salários mínimos. Isso porque citam que é marajá quem ganha acima de 30 mil reais, e, em vez de você combater o marajá que ganha 30 mil, prejudica 800 mil famílias de servidores da noite para o dia. Em resumo, acho que ajuste também tem que ser rediscutido.

Então, acho que estamos, de novo, com uma cobertura lamentável. Sem falar nas matérias que deviam ser feitas... Foi fechado um banco agora, que quebrou porque especulou muito na BM&F [Bolsa de Mercadorias e Futuros], e isso saiu no pé de uma página de um único jornal. Tinha que ter reportagem ilustrando quem realmente aplicou na BM&F, quem ganhou, quem não ganhou. Tem muita gente ganhando com essa crise, e você não tem nada disso.

Concluindo, tenta-se manter um otimismo falso de que se vai derrubar a importação e aumentar a exportação, e vai ficar tudo numa boa, quando você não tem apoio para exportar e tem apoio para importar. Até alimento você vai ter que continuar importando. Você não tem para exportar. O que tem para exportar para valer este ano é soja, café. Então, se não há produção suficiente, como é que você pode esperar aumento de exportação? Mesmo que venham esses 10 bi [de dólares] do FMI e o pacote que os banqueiros prometeram para novembro, nada disso resolve, porque se o buraco em dólar, continuar... Há também uma coincidência: o novo presidente do Banco Central foi nomeado um dia depois do patrão dele, o Soros, dizer que os banqueiros deviam agora também ajudar o Brasil, pode ser até que haja uma combinação de bastidores.

Então as causas todas dessa crise estão aí, continuam aí. Por quê? Por que a sociedade não está debatendo verdadeiramente. Está todo mundo preocupado com a taxa de juros, com a fuga de dólares, que não é explicado para a sociedade que não é exatamente a fuga de dólares, que é cancelamento de empréstimo ou empresa especulando. Então acho que continua a ser lamentável, esse ano não temos o debate que precisava e estamos perdendo de novo oportunidades. Vamos esquecer os 4 anos, tudo bem, mas tem que haver uma atitude diferente em relação a essa crise.

 

 


*Transcrito de: Instituto Gutemberg, entrevista concedida em 1999 a Sérgio Buarque de Gusmão.

**Aloysio Biondi, 62, jornalista, 44 anos de jornalismo, mais de 2 mil textos publicados. Neles, um intenso esforço de traduzir a realidade brasileira, interferir nela, permitir que, com base na informação, os brasileiros se manifestassem sobre os rumos do país. Durante a ditadura de 1964/84, participou ativamente da resistência com seu trabalho: numa revista Veja muito diversa da atual, desenvolveu uma cobertura pioneira do mercado de capitais; na efêmera, mas impactante, Revista Fator, esmerou-se em destrinchar os números da política econômica do todo-poderoso ministro Delfim Netto; na respeitada Visão, botou lenha na disputa entre ortodoxos e desenvolvimentistas, e venceu um Prêmio Esso ao mostrar os impactos econômicos do desrespeito ao meio ambiente.

Nasceu em Caconde/SP em 8 de julho de 1936, e partiu, em São Paulo21/7/2000, a vida intensa incluiu a passagem por vários dos principais veículos jornalísticos do país.

 

 

 

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