Apocalipse das mídias*
Ignacio
Ramonet**
Durante muito tempo a comunicação libertou, porque significava
difusão do saber, do conhecimento e da razão contra as superstições e
obscurantismos. Agora, impondo-se como obrigação absoluta, inundando todos os
aspectos da vida social, política, econômica e cultural, ela exerce uma espécie
de tirania. E tende a tornar-se uma das grandes superstições de nosso tempo
Em todas as
primeiras páginas, com letras enormes, um único título:
"The Sun backs Blair" (The Sun apóia Blair).
Tiragem diária de 4 milhões de exemplares, público leitor de 10 milhões,
defensor fanático das teses de Margaret Thatcher, o Sun de Londres anunciava, assim, em 18 de março de 97, sua espetacular
decisão de apoiar abertamente, nas legislativas britânicas de 1º de maio, o
candidato trabalhista Tony Blair, "dirigente
dotado de visão, de objetivos e de coragem". E de deixar de apoiar o
governo de John Major, ele próprio qualificado em abril de 1992, durante as
eleições precedentes de "dirigente
visionário, corajoso e determinado"...
Estima-se que em 2001, o poder da
rede Internet ultrapassará o do telefone, que o número de usuários da rede
oscilará entre 600 milhões e 1 bilhão e que a World Wide Web contará com mais
de 10 mil sites comerciais
Àqueles que se perguntavam sobre as razões de uma
tão repentina virada, Trevor Kavanagh, editorialista político do Sun explicou: "Penso que o jornal
não modificou sua linha, foram os trabalhistas que mudaram".
Que lições tirar dessa anedota aflitiva ? Ao menos
duas. A primeira, política, é que certos partidos social-democratas se
converteram a tal ponto ao neoliberalismo que se tornaram, aos olhos de
numerosos eleitores, intercambiáveis com a direita conservadora clássica. A
segunda, mediática, é que a informação continua a exercer sobre os espíritos
uma considerável influência na hora das escolhas eleitorais, e que esta influência,
às vezes, se negocia.
O faturamento das indústrias da
comunicação, que era de 1 trilhão de dólares em 1995, poderia elevar-se,
segundo
Relações
políticas suspeitas
O Partido Trabalhista comprou o apoio do Sun? É certo que Tony Blair encontrou-se
várias vezes, durante os últimos meses, com Rupert Murdoch, patrão do grupo
News Corporation, proprietário do Sun.
O apoio deste seria o resultado destes encontros, segundo o jornal francês Libération.
"Deixem-me ser claro", defendeu-se Tony
Blair, "nós nunca fizemos acordo com Rupert Murdoch em troca do apoio de
seus jornais." Mas, curiosamente, numa outra declaração, publicada no Correspondance de
Magnata da Austrália (possui uma centena de
jornais, assim como muitos canais de rádio e de televisão), Rupert Murdoch se
tornou célebre em meados dos anos 80 quando quebrou, com o firme apoio do
governo de Margaret Tatcher, o sindicato dos operários da imprensa, ligados ao
Partido Trabalhista. Controla atualmente um terço da tiragem dos quotidianos
britânicos -- notadamente com o Sun e
o prestigioso Times, e as suas
versões dominicais News of the World
e Sunday Times. Isto representa uma
pequena parte do império News Corporation (10 bilhões de dólares de
faturamento) que, no Reino Unido, controla igualmente British Sky Broadcasting
(BSkyB), rede de televisão paga por satélite e por cabo (6 milhões de
assinantes, uma das sociedades mais rentáveis da Bolsa de Londres), sem
concorrente local. E que se preparava, na época das eleições inglesas, para lançar
o primeiro serviço de televisão digital por satélite na Grã-Bretanha. Sem
dúvida, o projeto não era estranho à decisão doSun de apoiar Tony Blair, provável futuro primeiro ministro...
News Corporation, da qual Rupert Murdoch possui
30% das ações, é o exemplo tipo do grande grupo multimídia contemporâneo. Nos
Estados Unidos, ele controla as edições Harpercollins (550 milhões de dólares
de lucro em 1995)
1;
o quotidiano New York Post ; muitas
revistas, entre elas TV Guide; a sociedade
de produção Twentieth Century Fox (que entre outras, produz a série televisiva
"Arquivo X"); a rede de televisão Fox Network, um canal popular (FX);
um canal de informação contínua, Fox News Channel (que rivaliza com a CNN, do
grupo Time Warner, e com MSNBC, criada pela Microsoft e o canal NBC, da General
Electric); uma empresa de marketing e promoção, Heritage Media; assim como uns
vinte sites na Internet. No domínio do digital, Murdoch acaba de investir 1
bilhão de dólares para propor, em aliança com Echostar e a companhia telefônica
MCI, um serviço de mais de 200 canais aos telespectadores americanos.
A guerra no campo da comunicação é
sem dó nem piedade. Quem se ocupava de telefone quer fazer a televisão, e
vice-versa; todas as empresas, em particular os possuidores de uma rede de
distribuição (eletricidade, telefonia, água, gás, estradas de ferro, auto-
estradas, etc) aspiram controlar uma parte do novo eldorado, a multimídia.
Em parceria com as sociedades japonesas Sony e
softbank, Murdoch realizou igualmente o projeto de televisão por satélite Japan
Sky Broadcasting (J Sky B). Seu grupo já possui um canal de televisão por
satélite, Star TV, difundindo muitas dezenas de programas no Japão, na China,
na Índia, no sudeste asiático e no leste africano.
Essa profusão de alianças sem fronteiras, de
fusões e de concentrações -- das quais Rupert Murdoch é um arquiteto exemplar
-- caracteriza o universo atual das mídias.
Cada titã da comunicação quer se
tornar o único interlocutor do cidadão: fornecer-lhe as manchetes, as
diversões, a cultura, os serviços profissionais, as informações financeiras e
econômicas e colocá-lo em situação de interconectivi- dade através de todos os
meios de comunicação disponíveis.
Teia de
aranha do tamanho do planeta
Na hora da globalização da economia, da cultura
global (world culture) e da
"civilização única" se coloca em vigência aquilo que alguns chamam de
a "sociedade de informação global" (global information society). Esta se desenvolve na medida em que se
acelera a expansão das tecnologias da informação que tendem a invadir todos os
domínios da atividade humana e a estimular o crescimento dos principais setores
econômicos. Uma infraestrutura da informação global (global information infrastructure.) espalha-se como uma teia de
aranha com o tamanho do planeta, aproveitando-se dos progressos em matéria de
digitalização e favorecendo a interconectividade de todos os serviços ligados à
comunicação. Ela estimula em particular a imbricação dos três setores
tecnológicos -- informática, telefonia e televisão -- que convergem e se fundem
na multimídia e na Internet.
Há no mundo 1,26 bilhão de televisores (dos quais
mais de 200 milhões por cabo e cerca de 60 milhões ligados à um serviço
digital), 690 milhões de assinantes de telefones (cerca de 80 milhões de
celulares) e cerca de 200 milhões de computadores (30 milhões conectados à
Internet). Estima-se que em 2001, o poder da rede Internet ultrapassará o do
telefone, que o número de usuários da rede oscilará entre 600 milhões e 1
bilhão e que a World Wide Web contará com mais de 10 mil sites comerciais
2. O
faturamento das indústrias da comunicação, que era de 1 trilhäo de dólares em
1995, poderia elevar-se, segundo
Os gigantes da informática, da telefonia e da
televisão sabem que os lucros do futuro encontram-se nesses novos filões que
abrem, diante de seus olhos fascinados e cobiçosos, a tecnologia digital. Eles
não ignoram que, de agora em diante, seu território não está mais protegido e
que os mastodontes dos setores vizinhos os vigiam com instintos carnívoros. A
guerra no campo da comunicação é sem dó nem piedade. Quem se ocupava de
telefone quer fazer a televisão, e vice-versa; todas as empresas, em particular
os possuidores de uma rede física de distribuição (eletricidade, telefonia,
água, gás, estradas de ferro, sociedades de auto estradas, etc) aspiram
controlar uma parte do novo eldorado, a multimídia.
Quatro conferências internacionais
permitiram aos EUA popularizar junto aos dirigentes mundiais suas teses sobre a
"sociedade de informação global". Washington fez avançar a idéia de
que a comunicação deve ser considerada como um simples "serviço" e
regida pela lei geral do comércio
Os novos
senhores do mundo
De uma ponta a outra do planeta, os combatentes
são os mesmos, as firmas gigantes que se tornaram os novos senhores do mundo:
AT&T (que domina a telefonia planetária), o duo formado pela MCI (segunda
rede telefônica americana) e BT (ex- British Telecom), Sprint (terceiro
operador americano de longa distância), Cable & Wireless (que controla
notadamente Hong Kong Telecom), Bell Atlantic, Nynex, US west, TCI (o mais
importante distribuidor de televisão por cabo), NTT (primeiro grupo japonês de
telefonia), Disney (que comprou a rede de televisão ABC), Time Warner (que
possui CNN), News Corp, IBM, Microsoft (que domina o mercado de programas para
computador), Netscape, Intel, etc.
Na Europa, todas as batalhas vêem a disputa entre
grupos cujos interesses cruzados e as participações acionárias recíprocas são
múltiplas: News Corp., Pearson, (The
Financial Times, Penguin Books, BBC Prime), Betelsmann (primeiro grupo de
comunicação alemão), Leo Kirch, CLT (RTL), Deutsche Telekom, Stet (primeiro
grupo de telefonia alemã), Telefonica, Prisa (primeiro grupo de comunicação
espanhol), France Télécom, Bouygues, Lyonnaise des Eaux, Générale des Eaux (que
domina atualmente Canal Plus e Havas), etc. As mudanças de controle e as fusões
se multiplicam; somente para o ano de 1993, teria havido na Europa, ainda
segundo
A lógica dominante nessa mutação do capitalismo
não é a aliança, mas a absorção para tirar proveito do savoir-faire dos melhores colocados, num mercado que flutua ao
sabor de imprevisíveis acelerações tecnológicas ou de surpreendentes
"modas" dos consumidores, como o boom
da Internet. No coração da nova situação, o fluxo crescente e incessante dos
dados: conversações, informações, transações financeiras, imagens, sinais de
toda ordem, etc. Isso diz respeito, por um lado, às mídias que produzem estes
dados (edição, agências de imprensa, jornais, cinema, rádio, televisão, sites
na rede, etc.) e, por outro lado, ao universo das telecomunicações e dos
computadores que os transportam, que os tratam, que os elaboram. O objetivo de
cada um dos titãs da comunicação é se tornar o único interlocutor do cidadão.
Ele quer poder fornecer-lhe simultaneamente as manchetes, as diversões, a cultura,
os serviços profissionais, as informações financeiras e econômicas; e colocá-lo
em situação de interconectividade através de todos os meios de comunicação
disponíveis.
No momento em que se desfazem os
monopólios nacionais, aceleram-se a corrida ao tamanho crítico e a procura de
diversificação total nas comunicações. Num clima de competição carnívora, todos
os golpes são permitidos: "Cada vez que discuto com os grandes do
telefone", constata Louis Gallois, presidente da empresa francesa de estradas
de ferro, "tenho a impressão de entrar na jaula dos animais
selvagens."
A
informação reduzida a mercadoria
Para que essas infraestruturas tenham uma
utilidade, é preciso que as comunicações possam circular sem entraves através
do planeta, como o vento sobre a superfície dos oceanos. É por isso que, em
favor da globalização da economia, os Estados Unidos (primeiros produtores de
tecnologias novas e sede das principais firmas) jogaram todo seu peso na
batalha da desregulamentação para abrir as fronteiras do maior número de países
ao " livre fluxo da informação",
isto é, aos mastodontes americanos das indústrias da comunicação e dos
divertimentos
3.
Quatro conferências internacionais -- Genebra,
1992; Buenos Aires, 1994; Bruxelas, 1995; e Johannesburgo, 1996 -- permitiram
ao presidente norte-americano Bill Clinton e sobretudo ao vice-presidente
Albert Gore, popularizar junto aos dirigentes políticos mundiais suas teses
sobre a "sociedade de informação global". Por outra parte, durante os
debates que fecharam a Rodada do Uruguai do GATT, em 1994, Washington fez
avançar a idéia de que a comunicação deve ser considerada como um simples
"serviço" e, por este motivo, regida pela lei geral do comércio.
As telecomunicações de base representam um mercado
de 525 milhões de dólares, com um crescimento de 8 a 12% ao ano, e constituem
um dos domínios mais rentáveis do comércio mundial. Em 1985, o tempo consagrado
pelos usuários, no mundo, às telecomunicações (para falar, passar fax ou
transmitir dados) era de 15 bilhões de minutos; em 1995, ele atingia 60 bilhões
de minutos ; e, no ano 2000, ele ultrapassaria, segundo a revista Time os 95 bilhões de minutos. Esses
números, melhor que qualquer outra argumentação, explicam o jogo formidável da
liberalização das comunicações. Em novembro de 1996, os Estados Unidos enfim
obtiveram em Manila, durante a 4ª reunião de cúpula da APEC (Associação para
Cooperação Econômica na Ásia e Pacífico), a abertura dos mercados dos países
desta região às tecnologias da informação para o ano 2000. No mesmo espírito,
em Singapura, em dezembro de 1996, a reunião ministerial da Organização Mundial
do Comércio (OMC) recomendava "uma
inteira liberalização do conjunto dos serviços de telecomunicações, sem nenhuma
restrição geral. " E em Genebra, no dia 15 de fevereiro de 97, ainda
sob a influência da OMC, um acordo sobre as telecomunicações assinado por 68
países abriu, notadamente aos grandes operadores americanos, europeus e
japoneses, os mercados nacionais de dezenas de países.
A cada dia cerca de 20 milhões de
palavras de informação técnica são impressas sobre diversos suportes. Um leitor
capaz de ler mil palavras por minuto, durante 8 horas por dia, precisaria de um
mês e meio para ler a produção de um único dia; e, ao final deste período, ele
teria acumulado um atraso de cinco anos e meio de leitura...
Jaula dos
animais selvagens
A União Européia decidiu, por seu lado, a inteira
liberalização dos mercados do telefone (sem distinção entre os diferentes
suportes: cabo, rádio ou satélite), a partir de 1º de janeiro de 1998. Nesta
perspectiva, em previsão de concorrências ferozes no interior de cada mercado
nacional, os monopólios são pouco a pouco desmantelados, e os operadores
públicos, privatizados. A British Telecom, que se tornou BT, assim como a
Telefonica, da Espanha, já foram privatizadas. A France Télécom, que colocou no
mercado uma primeira fatia do seu capital a partir de 6 de maio de 97, reforça
a sua parceria com o operador público alemão Deutche Telekom, que será privatizado
depois do ano 2 000. Os dois operadores, aliás, aliaram-se ao americano Sprint
(dos quais cada um possui 10% do capital) e poderiam aproximar-se do britânico
Cable & Wireless, que pensa adquirir 80% do capital da Sprint. Desse modo,
no momento em que se desfazem os monopólios nacionais, aceleram-se a corrida ao
tamanho crítico, para sobreviver num mercado planetário, e a procura de
diversificação em todos os setores da comunicação. Tudo isso num clima de
competição carnívora, onde todos os golpes são permitidos: "Cada vez que
discuto com os grandes do telefone", constata Louis Gallois, presidente da
Sociedade Nacional das Estradas de Ferro francesas (SNCF), "tenho a
impressão de entrar na jaula dos animais selvagens."
Nesse sentido, podemos efetivamente constatar
estes últimos meses como a chegada de grupos de concorrentes de televisão
digital provocou violentas confrontações em todo o campo da comunicação. Na
Espanha, isso levou a um enfrentamento brutal e direto entre o governo
conservador de José Maria Aznar, que para se manter no poder deseja constituir
um grupo multimídia influente, e o principal grupo de comunicação, Prisa (El Pais, Radio SER), aliado ao Canal
Plus.
Na França, uma guerra total opõe os partidários da
televisão por satélite (TPS) e os de CanalSatellite. Entre estes últimos, o
movimento mais espetacular viu, em 6 de fevereiro de 97, a transferência de
controle da Havas e do Canal Plus l para a Générale des Eaux com o objetivo de
"reunir no interior de um único grupo de comunicação todas as competências
necessárias ao seu desenvolvimento, notadamente internacional" e de criar
"um grupo integrado de comunicação de tamanho mundial". A Générale,
por outro lado, confirmou o seu segundo lugar na telefonia francesa ao tornar-se,
em 12 de fevereiro, parceira da SNCF, de quem comprou, em parte através da sua
filial Cégétel (aliada da British Télécom), a rede de 26 mil quilômetros de
linhas telefônicas (dos quais 8,6 mil em fibras óticas).
Um mês antes, Jean Marie Messier, presidente da
Générale des Eaux, não pensava de jeito nenhum numa aproximação com a Havas.
Por que mudou de idéia tão repentinamente ? "Eu tinha subestimado",
respondeu ele ao jornal Le Monde,
"a rapidez da convergência entre as indústrias de telecoms e aquelas da
comunicação. Logo haverá um único ponto de entrada, nas casas, para a imagem, a
voz, a multimídia e o acesso Internet.. Esta evolução já está à caminho: dentro
de 12 a 18 meses ela será uma realidade comercial. Esta aceleração me levou a
concluir que é preciso ser capaz, para conservar as margens (de lucro), de
controlar toda a cadeia: conteúdo, produção, difusão e elo com o
assinante".
Durante muito tempo rara e onerosa, a
informação tornou-se farta e comum. Junto com o ar e a água, ela é hoje o
elemento mais abundante do planeta. Está cada vez menos cara, à medida em que
sua oferta aumenta, mas (como a ar e a água...) cada vez mais poluída e
contaminada.
Ao invés da
qualidade, quantidade
"Controlar toda a rede" é a ambição dos
colossos da informação. Para consegui-lo, continuam a multiplicar as aquisições
e as concentrações. Para eles, a comunicação é, antes de tudo, uma mercadoria
que é preciso produzir em enorme volume, a quantidade prevalecendo sobre a
qualidade. Em 30 anos, o mundo produziu mais informação que no curso dos 5 mil
anos precedentes...Um único exemplar da edição dominical do New York Times contém mais informação do
que poderia obter, durante toda a sua vida, um europeu do século 17. A cada dia
cerca de 20 milhões de palavras de informação técnica são impressas sobre
diversos suportes (revistas, livros, relatórios, disquetes, CDs). Um leitor
capaz de ler mil palavras por minuto, durante 8 horas por dia, precisaria de um
mês e meio para ler a produção de um único dia; e, ao final deste período, ele
teria acumulado um atraso de cinco anos e meio de leitura...
O projeto humanista de ler tudo, de tudo saber,
tornou-se ilusório e vão. Um novo Pico de
Podemos mesmo nos perguntar se a
comunicação não acabou de ultrapassar seu estado ótimo, seu zênite, para entrar
numa fase onde todas as suas qualidades se transformam em deficiências, todas
as suas virtudes em vícios
Libertação
ou tirania?
Podemos mesmo nos perguntar se a comunicação não
acabou de ultrapassar seu estado ótimo, seu zênite, para entrar numa fase onde
todas as suas qualidades se transformam em deficiências, todas as suas virtudes
Durante muito tempo a comunicação libertou, porque
ela significava (desde a invenção da escrita e a da imprensa) difusão do saber,
do conhecimento, das leis e das luzes da razão contra as superstições e os
obscurantismos de todo tipo. Agora, impondo-se como obrigação absoluta,
inundando todos os aspectos da vida social, política, econômica e cultural, ela
exerce uma espécie de tirania. E tende a tornar-se uma das grandes superstições
de nosso tempo.
É esta mudança qualitativa capital que sentem
claramente os cidadãos, cuja decepção em relação às mídias cresce, como provam
todas as pesquisas recentes. Nos Estados Unidos, 55% da população estimam que
os órgãos de imprensa publicam informações "seguidamente inexatas". A
porcentagem era de apenas 34% em 1985, segundo o Le Monde. Os norte-americanos afastam-se igualmente dos jornais
televisivos e são apenas 42% a segui-los regularmente (contra 63% em 1993). No
Velho Continente, se 87% dos europeus informam-se principalmente pelos jornais
televisivos, a desconfiança continua grande.
A reclamação central é contra a espetacularização,
a busca do sensacional a qualquer preço, que pode conduzir a aberrações (como vimos
no caso de Timisoara, ou durante a guerra do Golfo) e a
"falsificações." Na França, "o exemplo mais célebre foi o da
reportagem proposta por Jean Bertolino na revista "52 na primeira
página", onde Denis Vicentini filmou figurantes numa pedreira de Meudon,
fingindo que fossem notívagos povoando as catacumbas de Paris (...) O mesmo
tipo de polêmica voltou em janeiro de 1992, com a reportagem
O exemplo mais recente, ocorrido na Alemanha,
terminou com a condenação de um jornalista, Michel Born, 38 anos, a 4 anos de
prisão, considerado culpado de falsificar parcial ou totalmente 32 reportagens.
Esse falsificador, sabendo que os canais pedem imagens sensacionais, tinha
filmado, com a ajuda de atores e de cúmplices, curta-metragens
"documentários" sobre uma pretensa seção alemã da Klu Klux Klan,
sobre traficantes de cocaína, sobre neonazistas autores de cartas-bombas, sobre
trabalho infantil explorado no terceiro mundo, sobre os passadores de
imigrantes clandestinos árabes... Comprados por canais inescrupulosos, em
particular por Stern TV (televisão filial de semanário Stern que publicou os pseudo diários íntimos de Adolf Hitler...),
essas falsas reportagens, que não raro incitam ao ódio, foram vistas por mais
de 4 milhões de telespectadores e propiciaram importantes receitas
publicitárias.
A decepção
dos cidadãos com as mídias cresce de modo claro, como provam todas as pesquisas
recentes. Nos Estados Unidos, 55% da população estimam que a imprensa publica
informações "seguidamente inexatas". A porcentagem era de apenas 34% em 1985. Os
norte-americanos afastam-se igualmente dos jornais televisivos e são apenas 42%
a segui-los regularmente (contra 63% em 1993).
Sob pressão
da publicidade
Publicitários e anunciantes exercem, além disso
uma indiscutível influência perversa sobre o próprio conteúdo da informação.
Isso pôde ser constatado em 1995 nos Estados Unidos, quando os produtores do
programa de informação "60 minutos", considerado o mais sério da rede
CBS, realizaram um documentário para denunciar as companhias de tabaco. Essas,
foi demonstrado, mentiam, ao informar, nos maços de cigarro, a taxa de nicotina
do produto. Provocavam, desse modo, uma maior dependência. A rede CBS censurou
o programa. E devíamos descobrir que o fez por duas razões: primeiro, para não
entrar num processo que teria baixado suas ações na Bolsa na véspera da sua
fusão com o grupo Westinghouse; além disso, porque uma de suas filiais, Loews
Corporation, possuia uma sociedade, Lorillard, ela própria produtora de
cigarros... Nos dois casos, os interesses do capital e da empresa foram
colocados acima da preocupação com a saúde do público 6.
Três meses antes, a rede ABC conheceu uma
desventura semelhante. Tendo acusado a Philip Morris de manipular as taxas de
nicotina, no programa "Day One", a rede foi ameaçada pelo fabricante
de tabaco de um processo e de um pedido de pagamento de perdas e danos de 15
bilhões de dólares. ABC estava, naquele momento, à beira de ser adquirida pela
Disney, e o processo teria levado a uma sensível baixa do seu valor na Bolsa. A
rede preferiu, então, fazer uma retificação pública que, insultando a verdade,
livrava o fabricante de toda suspeita.
Enquanto as passarelas, as ramificações e as
fusões entre os grandes grupos de comunicação se multiplicam numa atmosfera de
canibalismo feroz, como estar seguro de que a informação fornecida por uma
mídia não visará, direta ou indiretamente, a defesa dos interesses de seu grupo
em vez dos do cidadão? Num mundo cada vez mais pilotado por empresas colossais
que obedecem a uma lógica comercial fixada pela Organização Mundial do Comércio
(OMC), e onde os governos parecem bastante ultrapassados pelas mutações em
curso, como estar certo de que a democracia será preservada ou ampliada? Num
tal contexto de guerra mediática acirrada, onde se enfrentam gigantes pesando
bilhões de dólares, como pode sobreviver uma imprensa independente?
notas:
1 Ler o dossiê "The Crushing Power of
Big Publishing", The Nation,
Nova
2 Correspondance de la presse, Paris, 27
de fevereiro e 11 de março de 1997. Ler também Dan Schiller, "Les
marchands à l'assaut de l'Internet, Le
Monde Diplomatique, março de 1997.
3
Ler Armand Mattelart, "Les nouveaux scénarios de la communication
mondiale", Le Monde Diplomatique,
agosto 1996 e
4
Pico de
5
Trecho extraído do livro Le journal
télévisé: Politique de l'information et information politique, de Arnaud
Mercier. Editado pela imprensa da Fondation nationale des sciences politiques,
Paris, 1997, p. 13
6
Ler Serge Halimi, "Industriels solidaires", Le Monde Diplomatique, novembro 1995.