*Milton Santos
Por definição, vida intelectual e recusa a assumir
idéias não combinam. Esse, aliás, é um traço distintivo entre os verdadeiros
intelectuais e aqueles letrados que não precisam, não podem ou não querem
mostrar, à luz do dia, o que pensam.
O intelectual verdadeiro é o homem que procura, incansavelmente, a verdade, mas não apenas para festejar intimamente, dizê-la, escrevê-la e sustentá-la publicamente. É um fato conhecido que, em épocas de obscuridade, os mandões do momento o proíbam ou o inibam de fazê-lo, gerando como conseqüência a listagem daqueles que se tornam mártires do seu próprio pensamento, como Unamuno, durante a Guerra Civil Espanhola, e dos que não renunciam ao dever da verdade, ainda que deixando para pronunciá-la quando retornam os regimes de liberdade. Mas é isso mesmo o que distinguiu a universidade de outras instituições.
Por isso, a atividade intelectual jamais é cômoda e
a exigência de inconformismo, que a acompanha, faz com que a sociedade
reconheça os seus portadores como porta-vozes das suas mais profundas
aspirações e como arautos do futuro. Por isso mesmo, observadores da
universidade, no passado e no presente, temem por seu destino atual, já que são
raras as manifestações de protesto oriundas de suas práticas, deixando, às
vezes, a impressão de que a academia pode preferir a situação de mera
testemunha da história, em lugar de assumir um papel de guia em busca de
melhores caminhos para a sociedade.
Quando os intelectuais renunciam a esse dever —
sejam quais forem as circunstâncias —, um manto de trevas acaba por cobrir a
vida social, uma vez que o debate possível torna-se, por natureza, falso.
Essa poderia também ser a definição mais desejada
da vida acadêmica em todos os lugares. Mas a verdade é que a forma como, nos
últimos tempos, se está organizando a convivência universitária acaba por
reduzir dentro dela o número de verdadeiros intelectuais, mesmo se aumenta o de
cientistas e de letrados de todo tipo. A vida universitária é cada vez mais
representativa de uma busca de poder sem relação obrigatória com a procura do
saber. E isso corrompe, de alto a baixo, as mais diversas funções da academia,
inclusive ou a começar pela trilogia agora ambicionada pelas atividades de
ensinar, pesquisar e transmitir à sociedade o trabalho intelectual.
Um primeiro resultado é, sem dúvida, o encolhimento
do espaço destinado aos que desejam produzir o saber, e não é raro que esse
movimento seja acompanhado por uma verdadeira hostilização, da parte dos que
mandam, em relação aos que teimam em colocar em primeiro plano a busca da
verdade. Constata-se, desse modo, uma separação, cada vez maior, entre estes e
o conjunto de docentes viciados em poder e que a ele se agarram por longos e
longos anos, formando um grupo com tendência ao isolamento e à auto-satisfação,
bem mais preocupado com as perspectivas de manter esse poder do que com a
construção de uma universidade realmente independente e sábia. A esses colegas
preferimos chamar de buroprofessores.
Na medida em que a noção de poder se arraiga como
algo normal, tais comportamentos parecem banalisar-se, tomando diferentes
feições no processo de reduzir as possibilidades de um trabalho independente e
de convocar, até mesmo, espíritos promissores para a aceitação de um trabalho
viciado, exatamente pela ingerência cada vez mais generalizada das lógicas de
poder.
Não sabemos em que medida será útil buscar a
relação entre as ações acima enumeradas e incluí-las no conjunto das realidades
que atualmente produzem o grande mal-estar ressentido nas universidades
brasileiras. O certo é que esse conjunto de fatos conduz, com mais ou menos
força, segundo os lugares, ao enfraquecimento do espírito acadêmico, e isso
acaba por contaminar o ensino, a pesquisa, as relações entre colegas e as
relações das faculdades frente à sociedade.
A força autêntica da universidade vem do espírito
acadêmico partilhado por professores e alunos e cuja preservação seria de
esperar que as autoridades universitárias sejam capazes de conduzir. É essa
fortaleza da instituição acadêmica o garante da autonomia na produção do saber,
assegurada através da liberdade de cátedra e da liberdade acadêmica efetiva,
conferida a cada professor, a despeito da vocação, às vezes, autoritária dos
colegiados e da prática de falsificação da democracia acadêmica.
A força exterior da universidade deriva de sua
força interior e esta é ferida de morte sempre que a idéia e a prática do
espírito acadêmico são abandonadas em favor de considerações pragmáticas.
Na grande crise em que o país agora se confronta,
torna-se evidente e clamorosa a ausência de uma discussão mais intensa e mais
profunda, partindo da academia, em suas diversas instâncias, e que, como em
outras ocasiões na vida de todos os povos, mostra o papel pioneiro da
universidade na construção dos grandes debates nacionais.
A apatia ainda está presente na maior parte do
corpo professoral e estudantil, o que é sinal nada animador do estado de saúde
cívico dessa camada social cuja primeira obrigação é constituir, como
porta-voz, a vanguarda de uma atitude de inconformismo com os rumos atuais da
vida pública.
* Geógrafo, professor emérito da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, autor de, entre
outros livros, Brasil: Território e sociedade no início do século XXI, Record, Rio de Janeiro, 2001, em parceria com Maria Laura
Silveira e “Pensando o espaço do Homem” (ED. Hucitec)..
** PS. Último
texto do professor Milton publicado em vida. Correio Braziliense, 3 de junho de
2001.
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