Milton Santos: O silêncio dos sem-geografia*

 

Marilene Felinto

 

 

 

           A morte do geógrafo Milton Santos, 75, que faleceu domingo (24-06-01) em São Paulo, não deixou um vazio apenas na cena intelectual do país: deixou um vazio bastante físico também. Sobretudo é importante que Santos tenha sido um homem negro, nordestino, descendente de escravos, que superou o destino de discriminação racial, social e de idéias que lhe estaria reservado nesta terra ingrata chamada Brasil.

Sobretudo é importante que ele tenha resistido ao bom-mocismo demagogo da elite econômica branca, dos partidos políticos e das condutas equivocadas do debate étnico-racial no país. Com seu ideário humanitário e original é que o professor se propunha ao apoio dos verdadeiros necessitados sociais.

Sua morte deixa mais pobre a crítica a esta era de neoliberalismo dilapidador -"tirania do dinheiro e da informação está na base do atual desarranjo do capitalismo global", dizia ele. E deixa mais desamparados os sem-economia, os sem-geografia: os sem-terra, os sem-teto, os negros, os índios, a horda de pobres que perambulam do território das secas, no norte, às favelas do sul, vítimas da globalização que ele chamava de "uma fábrica de perversidades".

Não conheci o professor Milton Santos na intimidade, admirava-o de longe, como quem admira um livro que leu na adolescência e foi marcado por ele.

Não tive a sorte de ter sido aluna sua. Descobri-o mais tarde, quando já tinha saído da Universidade de São Paulo, onde ele foi professor emérito de geografia e eu, aluna de graduação e pós-graduação em letras.

De todas as poucas ocasiões em que tive o prazer de conversar com ele, saí com a sensação boa de quem aguardaria, sem ansiedade, reler um dia aquele precioso livro da adolescência, guardado ao alcance dos olhos na estante –conversar mais, conhecê-lo melhor-, adiando a experiência de propósito, só para desfrutá-la no momento certo.

Mas como a gente se esquece de que não há momentos ideais, não deu tempo. A última vez que vi pessoalmente o professor foi assistindo a uma palestra sua na Folha sobre a ocupação do território nacional. O corpo já debilitado pela doença resistia no espírito lúcido, na inteligência genial.

A um jovem negro que se levantou na platéia e lhe perguntou, em tom militante, o que fazer contra a discriminação que "nós, os negros, sofremos nesta sociedade" e blablablá, Milton Santos respondeu sábio e duro, mas com toda a delicadeza que lhe era peculiar: estude, trabalhe, busque o seu caminho; nós, negros, precisamos parar de apenas nos lamentar (não me lembro das palavras exatas).

Houve outras lições que aprendi assim, num átimo, mas o espaço aqui é curto para contar. A última vez que falei com o professor foi por telefone, no início deste ano, para agradecer sua interferência pessoal a meu favor num caso jurídico.

O agradecimento não disse, entretanto, tudo o que eu gostaria de ter dito a esse homem que foi puro "pensamento vivido". Como afirmava Hermann Hesse, um dos meus autores preferidos na adolescência, "só o pensamento vivido tem valor".  A vida de cada homem -Hesse completava- é um caminho para si mesmo, a tentativa de um caminho, um esboço de via. "Nenhum homem chegou a ser completamente ele próprio. Uns não chegam nunca a ser homens, ficam em rã, lagarto ou formiga”.  Milton Santos foi um desses raros homens por inteiro. O território que se cale em respeito silencioso "Nossas universidades se tornaram quase tão burocráticas como um supermercado: há estoques e tudo é muito contabilizado...” Palavras de Milton Santos.

"É preocupante o enorme descuido com o papel da universidade. Corremos o risco de ficar com a palavra, mas sem a coisa...” Palavras de Milton Santos.

"Milton Santos é um homem que sempre cultivou mais discípulos do que parceiros, pelo grosso calibre de suas denúncias da cooptação de intelectuais que emudecem diante das tentações do mercado e dos riscos da globalização.

 *  Transcrito da Folha de São Paulo 26/6/2001

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