Entrevista com Milton Santos Instituto Polis*
Silvio: a cidade é assunto para quem professor?
Milton Santos:
Eu não sou planejador, fui quando era jovem, aí eu me meti a planejador.
Depois, quando eu deixei a política para estudar, descobri que o importante é
fazer análises, olhar as cidades como objeto de análise. Os primeiros
urbanistas eram grandes analistas do fenômeno urbano. Todos eles. A crítica que
eu faço à esquerda nessa relação com a cidade é a que faria também à direita,
agora à esquerda a gente faz com mais força crítica. Porque os planejadores de
esquerda de um modo geral não se preocupam com a análise do fenômeno urbano.
Eles já postulam soluções. Então o conteúdo da cidade é deixado à margem. São
as propostas que tomam a frente da cena. E mais recentemente estas propostas
são propostas neoliberais.
A
esquerda não sabe muito o que fazer com o urbano. E
com freqüência à esquerda realiza o trabalho da direita quando chega ao
governo. O planejamento urbano da esquerda facilita a expansão mais rápida do
neoliberalismo. Possivelmente isto vem do fato de que o planejamento urbano não
é entregue a estudiosos da cidade. Em vez do planejamento urbano ser responsabilidade de urbanólogos,
ele é responsabilidade de urbanistas. E a cidade não é assunto para urbanistas.
Carlos Tiburcio:
Eu achei uma abordagem ótima para começar, mas o senhor poderia ilustrá-la? Há
exemplos de políticas que materializam isso?
MS: Não, porque eu não desejo trabalhar com exemplos.
O exemplo é a chantagem. No exemplo a gente toma o que interessa. O domínio da
idéia é o domínio do pensamento puro. Se eu parto do exemplo, onde é que eu
vou? O futuro é uma construção, um desafio do presente. É a novidade. O que
interessa para vocês é o futuro, não é mesmo?
Silvio: Pensando o problema urbano, professor, ele vem se
caracterizando de uma maneira diferenciada ao longo do tempo...
MS: Isto sempre foi assim, isto não é novidade. A
novidade é que nós estamos em outro período histórico e a visão tradicional
trata o presente como se fosse o passado. Então não vai alcançar o futuro. Esse
me parece que é o drama que vivemos. As perguntas que vocês me fizeram são
muito tradicionais, expressam uma posição velha, sem imaginação, é a repetição
de um velho discurso que parece que funcionou quando não havia necessidade de
planejamento. Tanto que nunca tivemos planejamento urbano, tivemos alguma coisa
no passado, mas nos últimos 30, 40 anos o planejamento urbano não existiu.
Carlos Tiburcio:
Como é que se rompe com essa situação?
MS: Estudando. Porque eu acho que na área de
planejamento urbano, planejamento das cidades em geral, há um conjunto do de
preconceitos que impedem de pensar. Eu não sei como convencer um administrador
a estimular as pessoas a pensar. Um prefeito teria de ter dois organismos de
estudos diferentes. Teria de ter um organismo como a Sempla,
por exemplo, e um grupo de pessoas que pensa independentemente da Sempla. E isto não é contemplado em nenhuma das
municipalidades nem de direita nem de esquerda.
Silvio: Curitiba manteve o IPPUC
durante quase trinta anos...
MS: Mas pensar o status quo
não tem problema.
Silvio: Como abordar o novo nesta discussão?
MS: A partir dos materiais que a história fornece, de
um lado. De outro lado, no caso urbano, há uma confusão entre as coisas e a cidade.
As cidades seriam coisas somente e de fato são as coisas movidas pela a ação
humana. A abordagem urbanística é uma intervenção sobre coisas, vamos fazer uma
ponte, vamos fazer uma nova autopista, vamos fazer um túnel, vamos construir
casas, essa atitude – que é dos urbanistas de uma maneira geral diante da
cidade – ela impede o conhecimento do que é o organismo urbano, ela impede o
plano, daí a renúncia ao plano urbano. Porque o plano diretor não é plano
urbano, o plano diretor é algo que não tem maior significado para a construção
do futuro.
Carlos Tiburcio:
saiu nos jornais há pouco uma declaração do futuro secretário
de planejamento de São Paulo de que a necessidade é fazer um novo plano
diretor...
MS: O grande risco deste enfoque das coisas é que a
gente pode descambar para a estética urbana, não é isso? E para a cosmética
urbana, que é a grande moda atual. E para o divertimento das pessoas. E com
isso se desvia a direção política. Você não enfrenta os problemas e oferece
cristalizados os espaços. E aí também ajuda os escritórios. Aos grandes você dá
as grandes obras e aos pequenos e médios você dá as renovações locais. 80, 100
pracinhas. E diz que está planejando a cidade toda para os pobres e para o
futuro.
Silvio: Mas professor, pensando a cidade como um campo de
relações sociais,
MS: Essa é uma questão de uma vida. Você não responde
isto em uma frase. Essa é minha obra. Um trabalho contínuo de análise do
urbano. As idéias de hoje são uma cristalização de um pensamento que poderá ter
sido válido há 40 anos atrás mas não é uma posição que
leva em conta a história atual. Eu acho que a cidade hoje não tem nada a ver
com a cidade de trinta anos atrás. No meu modo de ver a cidade é um campo de forças, como todo território ela é um campo de
forças, é o lugar primordial da contradição com que o mundo se debate hoje. Ela
deve ser vista assim se a gente quer ter uma visão progressista, se a gente
quer pensar o futuro. O futuro é a escolha de caminhos para enfrentar as
contradições.
O
fenômeno urbano nacional não pode ser estudado fora do território. No caso do
Brasil a especificidade ela é de cada organismo urbano. O problema central que
eu vejo é que a questão das cidades, ela é tratada fora do território. Esse é o
problema que eu estou apontando na maior parte dos urbanistas. Aí você
acrescenta o discurso da pobreza, da desigualdade, mas que não é intrínseco, é
o chantili e a cereja em cima do bolo já feito. Isso quando a questão é o
próprio bolo.
Se
rompêssemos com essa visão da cidade como apenas um dado da dinâmica
territorial, isso nos levaria a uma outra visão dos problemas, inclusive da
construção da política e da federação. A federação atual é hostil a soluções
urbanas, não urbanísticas. As questões urbanísticas, elas se fazem
independentes, tanto que os modelos atuais, hegemônicos, eles são estrangeiros
de um modo geral. Eles são importados assim como são importados os pensadores
estrangeiros que vêm aqui dizer que devemos fazer assim, devemos fazer assado.
Silvio: O senhor se refere por exemplo
ao planejamento estratégico de cidades?
MS: Que ninguém sabe o que é! Ele não pode ser
estratégico se não corresponde à verdadeira dinâmica, que é a do território
nacional.
Silvio: Pensando a produção do urbano como uma resolução
permanente de um campo de conflitos, se a equação resultante destes conflitos
de alguma maneira mudasse as tradicionais elites que se apropriam do espaço
público, não poderia haver uma ampliação da cidadania e aumento da qualidade de
vida? O senhor vê alguma mudança nesse passado recente na dinâmica do conflito
que configura o urbano?
MS: A questão urbana, como a questão territorial, ela
tem o seu próprio vocabulário, que a gente recria com a história. É um
vocabulário que não se pode deixar envelhecer. O fenômeno urbano ele é separado
desta problemática geral da cidadania, da chamada qualidade de vida, essa
expressão que eu não gosto. Qualidade de vida, desenvolvimento sustentado, são
termos neoliberais. Matam qualquer discussão. Porque são terminais. São termos
utilizados pelos políticos que na hora de implementá-los,
não sabem como fazê-lo. Não sabem como fazê-lo porque não querem estudar. Ou
não podem estudar. Então eu considero que a questão é de análise, isto é, tem
que dar o lugar aos analistas. E os urbanistas, eles têm de obedecer. Eles são
executantes. Eles não são mais idealizadores, exceto se forem as duas coisas ao
mesmo tempo. Se eles não forem capazes de pensar, tem de se recolher ao papel
de meros executores, que são os técnicos.
Carlos Tibúrcio:
Essa é uma a problemática mundial?
MS - Ela é menos mundial do que parece. Em outros
países sempre houve respeito pelos que pensam. A partir do momento que a
questão urbana começou a ser estudada, e nesta época os urbanistas eram
urbanólogos também, eles reuniam de um lado essa vocação para a análise, e de
outro lado o comando da técnica para soluções de problemas concretos. Eu creio que
no resto do mundo a idéia do conhecimento da cidade como um todo sempre foi
presente. Grandes estudos de interpretação de cidades como Londres, como Paris,
sempre foram feitos. No Brasil até 40 anos atrás se faziam esses estudos
também, há excelentes estudos sobre a própria São Paulo. Houve o abandono desta
tradição, que traz como conseqüência a própria fragmentação da administração
urbana. Sem querer citar este ou aquele nome, a gente vê essa fragmentação. Eu
tenho que confiar que a prefeita faça o trabalho filosófico, da síntese.
No
Brasil, como na América Latina, e hoje na África e na Ásia, a urbanização se dá
em uma velocidade que nunca houve na Europa. E nós adotamos um modelo de uma
evolução lenta, gradual, domesticada pela eficiência da cidadania, exemplos que
copiamos tranqüilamente como se e a realidade brasileira não fosse trepidante,
de cidades sem cidadãos. Tudo isso vem também de um déficit de análise.
Continuamos adotando modelos estrangeiros e mesmo dentro da esquerda há um bom
número de administradores que tomam exemplos estrangeiros e os aplicam
servilmente, tranqüilamente, sem a crítica das esquerdas.
Silvio: Mas professor, não é à toa que o pensamento único
ganha esta força. Será que nós temos a capacidade da produção de um
conhecimento, nós temos uma capacidade de análise que possa estruturar o debate
em torno desses temas de outra maneira?
MS: Quando se tem o poder é também possível orientar
a produção das idéias. Não é verdade que não haja referências para isso no
Brasil. Eu acho que temos que sentar buscar, produzir, criar, inventar com as
pessoas. Parece ser mais simples copiar. Nesse elenco de perguntas que vocês
fizeram, não há traço de leitura do que eu escrevi. De meu trabalho de 40 anos.
O que há é uma vontade deliberada de desconsiderar o que é feito às perguntas
todas elas escapam do que eu introduzi na disciplina. Pedem-me para falar sobre
outras coisas e desconhecem minha contribuição. O que é uma prova que mesmo
entre os intelectuais há um descolamento que é típico da academia brasileira.
Minha recente exposição à mídia tem promovido alguns escritos menores, mas
minha obra mesmo, aquela que tem substância, ela não é discutida.
Carlos Tiburcio:
Esse isolamento professor, ele é a expressão do quê em sua opinião?
MS: É expressão de muitas coisas, entre as quais a desimportância que se dá ao pensar às questões urbanas. Eu
acho que no Brasil é considerado que não é preciso se pensar realmente sobre as
questões urbanas. Já se deixou de planificar a muito tempo. As pessoas escrevem
centenas de páginas, chamam isso de plano diretor. Há escritórios repetindo a
mesma coisa, só mudando o nome da cidade, sem um esforço de compreensão, de
captação da dinâmica real de cada pedaço do território.
O
que cada um produz não é discutido. As nossas revistas científicas não têm
páginas para discutir nada! O livro sai e pronto, acabou. Tem aquela festa, os
amigos vão e acabou. Uma vida política saudável, ela precisa de uma base
intelectual forte.
Silvio: Já houve uma época no Brasil em que os e especialistas
em relações de trabalho, analistas da questão sindical, tinham decretado o fim
do sindicalismo brasileiro. Isto ocorreu em 1979. Logo em seguida nos anos 80,
81 e seguintes nós assistimos toda a mobilização operária e sindical que vai
originar o pólo combativo, vai dar origem à CUT, etc. Naquela época, me pareceu
que estes especialistas não tinham instrumentos analíticos para dar conta do
reconhecimento das mudanças que se operavam na realidade brasileira, por isso
que estes estudiosos, ilusoriamente, identificavam um tipo de tendência que não
se configurou...
MS: Mas quando a gente descobre isso, já descobriu
quase tudo...
Silvio: Eu queria perguntar ao senhor se é possível
reconhecer um momento de ruptura com uma tradição teórica anterior no campo da
análise do urbano?
MS: Se vocês tivessem lido o que eu escrevi, a sério,
não me fariam essa pergunta. Essa resposta está lá. E a cada novo livro eu
venho renovando, apresentando novas propostas. A vida política, essa vontade de
fazer democracia que agora afinal está se manifestando, poderia ser revigorada
se os partidos tivessem uma noção da importância do trabalho nesse campo.
Carlos Tiburcio:
Está parecendo que o neoliberalismo está sofrendo derrotas justamente na
localidade, nas cidades, na base da sociedade. Porque aí forças as mais
variadas de oposição estão, pelas vias democráticas, conquistando novos
espaços. Isso desde Londres até Manágua, Cidade do México, São Paulo...Isso é um fenômeno, é esperado que a coisa venha
assim de baixo para cima, que ali na localidade onde as pessoas vivem suas
contradições é que surja o novo?
MS: Eu acho que as forças políticas hoje estão
atrasadas. Eu acho que quem está na frente é o povo mesmo. São duas coisas
diferentes.
Nunca
houve uma produção tão acentuada de carências como agora. Nos países mais
pobres isso se nota mais ainda. Só que a análise do fenômeno não é feita por
aí. Existem conflitos populares, existem conflitos gerais. As manifestações
populares são incompletas, às vezes incorretas, mas são
frutos, como diria o Marx, que eu creio que a globalização está trazendo.
Acho
isso fundamental. É dessas manifestações populares que eu acho que vem a saída.
Essa é a saída. E ela será tanto mais rápida e eficaz quanto mais a gente ajude
esse povo a entendê-la. É outra razão pela qual se eu fosse prefeito de uma
cidade grande primeiro ajudaria a criar nos próprios
organismos de planejamento, ou paralelamente a eles, grupos de estudo com
independência, para abastecer de idéias a partir desse novo e encorajar pesquisas
na Universidade, que cada vez menos é o lugar da pesquisa do novo. A
Universidade é cada vez mais requisitada, solicitada, a reproduzir modelos
velhos. Isso pela maneira de como a pesquisa é estimulada e financiada.
Carlos Tiburcio:
O Sr. falou sobre importantes estudos urbanos que se
fazem sobre cidades como Londres e Paris. Em termos mais contemporâneos o
senhor identifica algum lugar do mundo onde esteja havendo essa conjugação
entre o incentivo ao estudo e o urbano não sendo visto como coisa?
MS: Eu, como todo mundo, faço um esforço para me
atualizar, mas nós somos perturbados pela leitura dos colegas ocidentais, dos
colegas do Norte, que tem toda a produção dos nossos ismos.
Sempre foi assim e continua sendo. O que nós fazemos aqui neste centro de
pesquisa é bem diferente.
Silvio: A situação recente provocada no Brasil pelas
imposições do ajuste estrutural de nossa economia acabou fazendo com que o
conflito social explodisse no campo em primeiro lugar. O que permitiu a
constituição de novos atores políticos, o crescimento do MST.
Existem analistas que apontam que o conflito social agora vai explodir no meio
urbano. O que o senhor acha disso?
MS: Simplesmente as pessoas não querem ver, querem
olhar com as lunetas dos anos 40, 50, 60. São muitos os conflitos que a gente
não está habituado a ver. Porque temos uma dificuldade
de aceitar o novo. A gente identifica uma miríade de conflitos que a gente não
nomeia porque são novos. Os conflitos agrícolas são urbanos, no fundo. Há
também solidariedade, não é só conflito, não é só violência.
Silvio: O senhor sugere em algum dos seus textos que nós
precisamos fazer uma pesquisa mais profunda das formas de solidariedade no meio
popular. O senhor pode desenvolver um pouco mais essa idéia?
MS: Eu creio que é preciso mapear essas formas de
solidariedade e encontrar, digamos, a lógica da sua espontaneidade. Isso para
que essa lógica possa entrar na programação dos partidos e eventualmente no projetamento dos governos. É uma perspectiva de se
contrapor à lógica de hoje, que é não querer o povo, a lógica dos pobres, e
promover a sua substituição pela lógica dos poderosos. Que é o que está vendido
no caso brasileiro de alto a baixo, de leste a oeste, na panóplia
ideológica.
Por
exemplo, essa luta encarniçada contra o chamado setor informal. Esse setor
informal, que eu chamo de circuito inferior, ele é o lugar da liberdade, da
inventividade, da originalidade, é o lugar onde tudo pode estar presente. A
racionalidade do chamado setor formal, ela mata o futuro. Então, como é que eu
vou estimular essas forças sociais, essa forma de vida interpessoal, sem que
isso seja corrompido pela formalidade? Acho que esse é o problema a ser
tratado. Mas aí você teria de ter um pensamento geral, mas capaz de captar a
sua dinâmica em cada localidade, porque o fenômeno se dá igualmente mas assume configurações territoriais particulares. Acho
que de novo, são as idéias que podem mudar essa
realidade, o que é abominado pelos políticos e administradores. As idéias, os
pensadores mais gerais, são chamados para ajudar os
candidatos a fazer discursos, mas não para fazer uma política.
Silvio: É que a política supõe mediações institucionais e
supõe um certo pragmatismo de resultados, não é? Como
combinar a produção desse conhecimento com a constituição de novos atores
capazes de mudar o que aí está? O senhor está atribuindo aos partidos o papel
de absorver as indicações do novo, mas os partidos estão sendo capazes de
absorver isso?
MS: Eu acho que estão. Na minha experiência estão.
Não os partidos como estruturas maciças, os aparelhos. Mas o que a gente vai
fazer com os aparelhos? O que intelectual tem que ver com aparelhos de
partidos? Intelectual só pode ser ouvido por fragmentos de partidos, que estão
se multiplicando. Nós estamos tendo no Brasil uma evolução revolucionária da
vida política.
Carlos Tiburcio:
Como o senhor identifica isso?
MS: Aí eu vou dar os nomes. Um partido político como
o PFL, ele cristaliza as ambições do neoliberalismo. Inclusive com a sua veia
mais recente, que é a veia caritativa, pregada pelos organismos internacionais.
No PT, de outro lado, instala-se um debate interno intenso entre grupos que eu
não saberia nomear. Esses fragmentos de partidos estão se levantando com muita força . Existe também a tendência de fragmentação dos
aparelhos dos partidos progressistas, de todos. Eu creio que isso é novo no
Brasil. Essa é que é a novidade. Quando só tinha o PT, só tinha um lado, não
tem debate. O problema é que surge uma certa confusão,
algumas pessoas do PT imaginam que podem confraternizar com a direita que está
no PFL. Só que o tema da cidade não pôde ser incorporado ainda. Então isso é um
freio a que essa evolução política se dê.
Silvio: Seria possível pensar, a partir dos sinais
presentes hoje, que um novo mundo urbano é possível, aqui no Brasil?
MS: Eu acho que sim. Essa realidade está se
produzindo. Em primeiro lugar, a cidade tomou o lugar da nação. E a nação, pela
mão do aparelho de Estado,foi escangalhada. A cidade,
ela é que se apropria das possibilidades do futuro, não é o campo. A cidade, no
seu funcionamento, hoje é menos capitalista do que o campo moderno. Ela é
mistura. Ela é criativa porque é mistura. O que falta é aumentar a consciência
desses fatos todos de modo a reduzir o jogo de cabra cega. O que é um trabalho
em primeiro lugar dos intelectuais, dos para-intelectuais. Esse termo não é
pejorativo. É pára-intelectual porque está preocupado
com resultados. E o intelectual não tem que estar preocupado com isso não. É
também um trabalho dos políticos, mas também dos não-políticos porque as
instituições, elas limitam o debate.
Silvio: Nós estamos assistindo hoje uma crise crescente
nas cidades, que se expressa no aumento da violência, da privatização do espaço
público, do domínio do narcotráfico, de uma falta de regulação da vida pública.
O contrato social acabou se precarizando cada vez
mais. Eu vejo que não está garantido um futuro com uma mutação como o senhor
aponta como uma possibilidade. Nós podemos estar indo
para uma situação de barbárie. Nós podemos estar indo
para uma situação de decomposição da nação como vive a Colômbia hoje. Para
cidades como a Los Angeles do filme Blade Runner. O que o senhor acha dessas possibilidades?
MS: Eu acho um equívoco culpar a cidade por um
fenômeno de civilização. É um ponto de partida equivocado. Não é a cidade, é a
civilização. De novo, ou a gente trabalha as coisas, ou a gente trabalha as
pessoas nas relações com as coisas. A violência também existe, mas é só isso
que existe? Como é que eu vou analisar o fenômeno urbano? Esse é que é o meu
problema. Não é me fixando naquilo que a imprensa bate todo dia. Ela transforma
a violência numa questão policial em vez de produzir um debate civilizacional. Não houve nenhum momento em que surgiu a
palavra civilização.
Carlos Tiburcio:
MS: Eu não queria citar facções, mas é nítida
Silvio: Mas se a questão é civilizacional,
ela toca todas as formas de vida em sociedade, e aí não perdemos a
especificidade do urbano?
MS: Eu tenho que voltar à minha primeira crítica, de
que nós não sabemos trabalhar os dados. É essa procura que eu acho que tem de
ser feita. Porque as categorias de análise são velhas e você não pode trabalhar
o novo com categorias epistemológicas superadas. Eu acho que esse é o drama, se
não houvesse idéias, não haveria globalização. Nunca houve um período histórico
construído a partir de idéias. Esse é o primeiro. Ele foi ideado há 40, 50
anos.
Silvio: Minha pergunta é sobre a nossa
possibilidade de reconhecer a partir das práticas, das experiências em curso,
sinais de mudança. Eu reconheço nesse mundo das cidades uma fragmentação
muito grande nos setores populares, uma dificuldade muito grande de estabelecer
redes, fóruns de ação conjunta. Já houve no passado períodos em que essas
manifestações eram mais visíveis, mais articuladas. E hoje não, há uma grande
dificuldade para atuar
MS: Por que eu vou partir do passado para discutir
essas coisas? Que o pobre queira consumir é absolutamente normal no período
atual. E uma boa parte da sociedade de mutação deixa a vontade de consumo, essa
compulsão ao consumo que é típica do nosso período. Eu tenho que levar em conta
isso. Acho que esse é o problema nosso. E aqui eu volto à minha tese central:
nós temos que distinguir, como dizem os filósofos,
entre a ação contingente e a ação possível. Se eu não reconhecer essa dualidade
do ser humano, eu não tenho futuro. Porque nós somos condicionados por forças
que nunca foram tão fortes também no constrangimento ao pensamento.
Carlos Tiburcio:
De onde nós podemos esperar que surja de uma maneira mais articulada esse tipo
de questionamento ao pensamento único?
MS: Eu acho que ele já existe. Da parte dos pobres.
Dos pobres imigrantes, das minorias. E há a codificação, que é trabalho nosso,
codificar e inventar, porque o pensamento também é cultivo. Essa invenção a par
da codificação, do que a sociedade descobre de novo. No caso do Brasil isso é
muito difícil porque o Brasil é sempre hostil com seus intelectuais. Não gosta
deles. Os intelectuais sempre tem poucos recursos, são
chamados para enfeitar acontecimentos e depois são mandados embora. Hoje os
aparelhos partidários colocam um cordão sanitário em torno dos intelectuais,
eles prescindem deles, trabalham sem de um modo geral.
Silvio:
Há hoje no Brasil uma valorização de certas práticas, como programas de renda
mínima, bolsa-escola, incubadoras de empresas, economia solidária,
micro-crédito, e numa outra vertente, por exemplo, o Orçamento Participativo. À
parte o Orçamento Participativo, eu poderia dizer que todos esses programas são
políticas de corte keynesiano, voltadas para atender
os mais pobres, sem maiores alcances estratégicos...
MS: Porque você coloca à parte o Orçamento
Participativo?
Silvio: Porque eu tenho dúvidas se podemos incluir o OP com a mesma qualidade que as demais políticas que eu
citei. Essas políticas, nesse sentido, não teriam nada de inovador. Nós
estaríamos apenas reproduzindo formas complementares de atendimento aos bolsões
mais vulneráveis de pobreza gerados pelos próprios efeitos do ajuste. O que
colocaria em questão uma afirmativa corrente de que através destas práticas
estaria se produzindo o empoderamento destes setores
mais pobres, sua inclusão no mundo de uma cidadania mais ativa. Isso ficaria em
questão, não é mesmo?
MS: Para um intelectual que se pretende de esquerda,
a resposta para estes exemplos que compõem os primeiros casos é um sorriso
mesmo. A adoção desses programas é a prova da falta de vontade de enfrentar a
tarefa da transformação social. É o neoliberalismo que põe pó-de-arroz aqui e
ali, ajeita uma coisinha aqui, uma ali, dá uma esmola. A prova é que a renda
mínima, ela só tem um efeito multiplicador nos lugares de extrema pobreza.
Quanto
à participação, é difícil discutí-la
porque mobilizar as pessoas para discutir parte do gasto público não modifica a
minha visão sobre a cidade, mas está bem, eu acho bom que se comece a preparar
as condições para poder mudar. Só que é um desafio passar da discussão da
distribuição do gasto público para a discussão da cidade. Espero que
O
que acontece quando não se pensa a cidade, o prefeito pode melhorar as
condições de arrecadação, ele pode eventualmente dar a impressão de progresso,
mas está simplesmente entregando a cidade à lógica do neoliberalismo, como nós
estamos assistindo em algumas municipalidades progressistas. É a lógica do
grande capital, do capital bancário, que vai predominar na evolução urbana.
Então o problema que está se colocando é: o quê a esquerda tem a fazer na
cidade?
Eu
acho que enquanto as esquerdas não compreenderem que não são os discursos, ou
os urbanistas, que vão mudar as cidades, a lógica continua a mesma. Tanto que
eles podem circular livremente em todos os governos com as mesmas propostas.
Com a mesma tranqüilidade. Quer dizer que a esquerda é cega, inteiramente
perdida na questão urbana e tem que se reencontrar rapidamente. Porque o futuro
não espera.
* Transcrita do Instituto Polis. Carlos Tibúrcio é jornalista e coordenador do Le
Monde Diplomatique – Brasil e Silvio Caccia Bava é sociólogo, fundador
e pesquisador do Instituto Pólis.
28
de junho de 2001.
Entrevista
publicada originalmente no Caderno Especial "Um Outro Mundo Urbano é
Possível", co-edição Instituto Pólis e Le Monde Diplomatique, por
ocasião do Fórum Social Mundial - 2001.