A Revolução Tecnológica, a experiência da escassez
e os limites da globalização atual*
As
técnicas estão, hoje, em toda parte: na produção, na circulação, no território,
na política, na cultura, no corpo e no espírito do homem. Tanto os objetos
quanto as ações derivam de técnica. Vivemos em um emaranhado de técnicas, o
que, em outras palavras, significa que estamos todos mergulhados no reino do
artifício. Na medida em que as técnicas hegemônicas, fundadas na ciência e
obedientes aos imperativos do mercado, são extremamente dotadas de
intencionalidade, há, igualmente, tendência à hegemonia de uma produção
"racional" de coisas e de necessidades; e, desse modo, a uma produção
excludente de outras produções, com a multiplicação de objetos técnicos
estritamente programados que abrem espaço para esta orgia de coisas e
necessidades que impõem relações e nos governam. Cria-se um verdadeiro
totalitarismo tendencial da racionalidade – isto é, dessa racionalidade
hegemônica, dominante – produzindo-se, a partir do respectivo sistema, certas
coisas, serviços, relações e idéias. Esta, aliás, é a base primeira da produção
de carências e de escassez, já que uma parcela considerável da sociedade não
pode ter acesso a coisas, serviços, relações, idéias que se multiplicam na base
da racionalidade hegemônica.
Assim,
a situação contemporânea revela, entre outras, três tendências: 1. Uma produção
acelerada e artificial de necessidades; 2. Uma incorporação ilimitada de modos
de vida ditos racionais; 3. Uma produção limitada de carência e escassez.
Nessa
situação, as técnicas, a velocidade, a potência criam desigualdade e,
paralelamente, necessidades, porque não há satisfação para todos. Não é que a
produção necessária seja globalmente impossível. Mas o que é produzido –
necessária ou desnecessariamente – é desigualmente distribuído. Daí a sensação
e, depois, a consciência da escassez: aquilo que me falta a mim, mas que o
outro mais bem situado na sociedade possui. A idéia vem de Sartre, quando
registra que "não há bastante para todo o mundo". Por isso o outro
consome e não eu. Cada homem é, afinal, definido pela soma dos possíveis que
lhe cabem, mas também pela soma dos seus impossíveis.
reino
da necessidade existe para todos, mas segundo formas diferentes, as quais
simplificaremos, mediante dois tipos de situações: para os
"possuidores", para os "não-possuidores".
Quanto
aos "possuidores", torna-se viável mediante possibilidades reais ou
artifícios renovados, a fuga à escassez e à da superação, ainda que provisória,
da escassez. Como o processo de criação de necessidades é infinito, impõe-se
uma readaptação permanente. Cria-se um círculo vicioso com a rotina da falta e
da satisfação. Na realidade, para essa parcela da sociedade, quando a falta é
criada já o é com a expectativa e a perspectiva de satisfação. As negociações
para regressar ao status de consumidor satisfeito conduzem à repetição de
experiências exitosas. Desse modo, a parcela de consumidores contumazes obtém
uma convivência relativamente pacífica com a escassez. Mas, a busca permanente
de bens finitos e, por isso, condenado ao esgotamento (e à substituição por
outros bens finitos) condena também os aparentemente vitoriosos à aceitação da
contra finalidade contida nas coisas e, em conseqüência, ao enfraquecimento da
individualidade.
Quanto
aos "não-possuidores", sua convivência com a escassez é conflituosa e
pode até ser guerreira. Para eles, viver na esfera do consumo é como querer
subir uma escada rolante no sentido da descida. Cada dia acaba oferecendo uma
nova experiência da escassez. Por isso, não há lugar para o repouso e a própria
vida acaba por ser um verdadeiro campo de batalha. Na briga cotidiana pela
sobrevivência, o que há, mesmo, é uma luta, pois não há para eles negociação
possível, já que, individualmente, não há força de negociação. A sobrevivência
só lhes é assegurada porque as experiências imperativamente se renovam. E como
a surpresa se dá como rotina, a riqueza dos "não-possuidores" é a
prontidão dos sentidos. É com essa força que eles se eximem da contra
finalidade e, ao lado da busca de bens materiais finitos, cultivam a procura de
bens infinitos, como a solidariedade e a liberdade: estes, quanto mais se distribuem
mais aumentam.
É
a partir dessas premissas que se pode pensar na reemergência das massas. Para
isso devem contribuir, a partir das migrações políticas ou econômicas, a
ampliação da tendência atual à mistura intercontinental e intranacional de
povos, raças, religiões, gostos, assim como a tendência crescente à aglomeração
da população em alguns lugares, essa urbanização concentrada já revelada nos
últimos 20 anos.
Da
combinação dessas duas tendências, pode-se supor que o processo, já iniciado há
meio século, levará à generalização de um certo esquema dual já presente nos
países subdesenvolvidos do sul e agora ainda mais evidente.
Tal
sociedade e tal economia dual (mas não dualista) conduz a duas formas de
acumulação, duas formas de divisão do trabalho e duas lógicas urbanas distintas
e associadas, tendo como base de operação um mesmo lugar.
O
fenômeno, já antevisto, de uma divisão do trabalho por cima e de uma outra por
baixo tenderá a se reforçar. A primeira prende-se ao uso obediente das técnicas
da racionalidade hegemônica, enquanto a segunda é fundada na redescoberta
cotidiana das combinações que permitem a vida e que operam, segundo os lugares,
em diferentes graus de qualidade e de quantidade.
Com
a divisão do trabalho por cima, dá-se uma solidariedade criada de fora e
dependente de vetores verticais e de reflexões pragmáticas freqüentemente
longínquas. A racionalidade é mantida à custa de normas férreas, exclusivas,
radicais, implacáveis. Sem obediência cega não há eficácia.
Na
divisão do trabalho por baixo, o que se produz é uma solidariedade criada de
dentro e dependente de vetores horizontais cimentados no território e na
cultura locais. Aqui são as relações de proximidade que avultam, este é o
domínio da flexibilidade tropical com a adaptabilidade extrema dos atores, uma
adaptabilidade que é fundada de dentro. A cada movimento novo, há um novo
reequilíbrio em favor da sociedade local e regulado por ela.
A
divisão do trabalho por cima é um campo de maior velocidade, com sacrifício do
simbólico. Nela, a rigidez das normas econômicas (privadas e públicas) impede a
política e toma o seu lugar. Por baixo, há maior dinamismo, maior movimento,
mais encontros, maior complexidade, mais riqueza (a riqueza e o movimento dos
homens lentos), mais combinações. Produz-se uma nova centralidade do social,
segundo a fórmula sugerida por Ana Clara Torres Ribeiro, o que constitui uma
nova base para a afirmação do reino da política.
Projeto
Racional começa a mostrar suas limitações, talvez porque estejamos atingindo
aquele paroxismo previsto, por Weber, para realizar-se quando o processo de
expansão da racionalidade capitalista se tornasse ilimitado. Tudo indica que
estamos atingindo esse limite, agora que vivemos, nos diversos níveis da vida
econômica, social, individual, uma racionalidade totalitária que vem
acompanhada de uma perda da razão. O escândalo de carências e de escassez que
atinge uma parcela cada vez maior da sociedade permite reconhecer a realidade
dessa perdição. E uma boa parcela da humanidade, por desinteresse ou
incapacidade, não é mais capaz de obedecer a leis, normas, regras, mandamentos,
costumes, derivados dessa racionalidade hegemônica. Daí a proliferação de "ilegais",
"irregulares", "informais". Essa incapacidade mistura, no
processo de vida, práticas e teorias herdadas e inovadas, religiões
tradicionais e novas convicções.
É
nesse caldo de cultura que numerosas frações da sociedade passam da situação
anterior de conformidade associada ao conformismo a uma etapa superior da
produção da consciência, isto é, a conformidade sem o conformismo. Produz-se,
desta maneira, a redescoberta pelos homens da razão, e não é espantoso que tal
descobrimento se dê exatamente nos espaços sociais, econômicos e geográficos
também "não conformes" à racionalidade dominante.
Na
esfera da racionalidade hegemônica, pequena margem é deixada para a variedade,
a criatividade, a espontaneidade. Enquanto isso, nas outras esferas surgem
contra-racionalidades e racionalidades paralelas, corriqueiramente chamadas de
irracionalidades, mas que, na realidade, constituem outras formas de
racionalidade, produzidas e mantidas pelos que estão "em baixo",
sobretudo os pobres, que, desse modo, conseguem escapar ao totalitarismo da
racionalidade dominante. Devemos, mais uma vez, reconhecer o ensinamento de
Sartre quando ele lembra que é a escassez o que torna a história possível,
graças à "unidade negativa da multiplicidade concreta dos homens".
Tal
situação é esperançosa, em parte porque agora paradoxalmente assistimos ao fim
das expectativas de melhoria social nutridas no após guerra e constatamos a
ampliação do número de pobres, assim como testemunhamos o estreitamento das
possibilidades e das certezas que as classes médias acalentavam até os anos de
1980. Junte-se a isso o fato de que a realização cada vez mais densa do
processo de globalização enseja o caldeamento, ainda que elementar, das
filosofias produzidas nos diversos continentes, em detrimento do racionalismo
europeu, que é o bisavô das idéias de racionalismo tecnocrático hoje
dominantes.
As
famílias de técnicas emergentes com o fim do século oferecem a possibilidade de
superação do imperativo da tecnologia hegemônica e, paralelamente, admitem a
proliferação de novos "artesanatos" com a retomada da criatividade,
como, aliás, já se está dando nas áreas da sociedade onde a divisão do trabalho
se produz de baixo para cima. Aqui a produção do novo e o uso da difusão do
novo deixam de ser monopolizados por um capital cada vez mais concentrado, para
pertencer ao domínio do maior número, possibilitando, afinal, a emergência de
um verdadeiro mundo da inteligência. Desse modo, a utilização da técnica pode
voltar a ser o resultado do encontro do engenho humano com um pedaço
determinado da natureza, permitindo que essa relação seja fundada nas
respectivas virtualidades e de modo a assegurar a restauração do homem em sua
essência.
A
partir dessa metamorfose, pode-se igualmente pensar na produção local de um
entendimento progressivo do mundo e do lugar, com a produção indígena de
imagens, discursos, filosofias, junto à elaboração de um novo
"ethos", novas ideologias, novas crenças políticas, tudo isso
amparado na ressurreição da idéia e da prática da solidariedade.
O
mundo de hoje permite uma outra percepção da história, por meio da constituição
de uma universalidade empírica. Sua dialética com as particularidades
encorajará a superação das práxis invertidas e a possibilidade de ultrapassar o
reino da necessidade, abrindo lugar para a utopia e para a esperança. São estas
condições históricas do presente, reconhecíveis segundo uma nova forma de
enxergar a globalização, o que permitirá reconhecer, na totalidade do planeta,
o que já existe e o que é possível, vistos de uma forma unitária. Lembremo-nos
da lição de Alfred Schmidt (1971; 196) quando dizia que "A realidade é,
além disso, tudo aquilo em que ainda não nos tornamos, ou seja, tudo aquilo que
a nós mesmos nos projetamos como seres humanos, por intermédio dos mitos, das
escolhas, das decisões e das lutas".
* Discurso
proferido na ocasião do recebimento do título de Doutor Honoris Causa
da Universidade de Brasília, em 11 de
novembro de 1999
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