Luciano Vasapollo (entrevista)
[*]
O Congresso "Marx
Internacional IV", organizado pela Actuel
Marx
, decorreu entre 29 de Setembro a 2 de Outubro de 2004. Nas páginas desta
prestigiosa revista apresentou-se nestes últimos anos o debate e as
contribuições marxistas europeias. O facto meritório de não haver dado o braço a torcer durante a
caça às bruxas desencadeada nos anos noventa não
impediu que a reflexão marxista europeia tornasse a
cair naquele defeito perfeitamente identificado, já há mais de 30 anos, por Perry Anderson em "O debate no marxismo ocidental". Anderson
criticava os marxistas europeus por haverem abandonado a sua relação com o
conflito de classes e os movimentos reais e haverem-se refugiado nos aspectos
superestruturais e académicos. A definição de
Katedhersocialisten não é um anátema e sim algo mais que uma
crítica.
Nesta entrevista,
Luciano
Vasapollo, estudioso marxistas
italiano, autor de numerosos trabalhos traduzidos em várias línguas, tem
contribuído para reabrir nestes últimos anos um debate sobre questões decisivas
como a teoria marxista do valor, o imperialismo ou a centralidade do conflito
entre capital e trabalho. Vasapollo participou no
congresso de Paris com a apresentação de comunicações em várias secções e numa
das sessões plenárias finais. Em mais de uma ocasião enfrentou as demais escolas
do marxismo ocidental. Nesta entrevista explica como foram as discussões.
Qual era o
programa de debates do Congresso marxista de Paris? Houve uma confrontação entre
as diversas tendências?
LV: O tema do encontro era "Guerra imperial, guerra social" e houve doze sessões científicas, dentre as quais economia, direito, ecologia, género, história, filosofia e socialismo. O enfrentamento deve lugar em grupos fechados entre as diversas tendências e provocou um debate mais de carácter académico.
Mas quais
são, em traços largos, as tendências marxistas actuais?
LV: Poderemos definir uma primeira como académica, no sentido estrito da palavra: não se coloca o problema da dialéctica com os movimentos reais e sim o de uma hipotética 'originalidade cultural'.
Depois há outras duas tendências que se exprimem
numa linguagem mais radical, refiro-me aos que compartilham as reflexões de Toni Negri e aos estudiosos mais
próximos à IV Internacional. Utilizam uma linguagem radical
mas, em muitos aspectos, coincidem com a primeira quanto à distância a
que se encontram dos movimentos sociais reais.
Finalmente, existe uma quarta, na qual me incluo,
que poderemos definir como de 'estudiosos militantes' que têm uma relação mais
estreita com os movimentos sociais, sindicais, etc e
que se consolidou sobretudo na América Latina.
Após os
anos do silêncio e da resistência cultura -- os anos noventa -- em que situação
se encontra, na sua opinião, o debate e a reflexão
marxista na Europa?
LV: Com a experiência de vários encontros internacionais devo admitir que a nossa posição, que após aqueles anos encontrava-se marginalizada a nível político e cultural, actualmente está a encontrar maiores oportunidades para o debate. Nestes anos reabriu-se um debate amplo e também duro sobre a actualidade da teoria do valor de Marx. A princípio o debate surgiu no âmbito marxista em que se desenvolveram trabalhos que poderemos chamar de 'sraffianos'. Eles afirmavam desejar manter uma visão marxista mas, de facto, haviam-no esvaziado de conteúdo mediante argumentos de escassa relevância no plano científico. Em alguns casos estas posições chegaram ao keynesianismo, ainda que com uma linguagem mais radical. Os próprios keynesianos estão divididos entre keynesianos 'de esquerda' e 'neokeynesianos', como posições diversas. Também há outros que se aproximaram do que chamamos pós-marxismo e que são claros partidários do abandono do marxismo, exceptuando alguns textos anteriores a O Capital, como o Grundrisse.
Há dois anos organizámos
um congresso internacional da Universidade de Roma onde, em colaboração com Carchedi, Freeman, Kliman e Giusani, apresentámos uma reflexão colectiva
que reafirmava a validade da colocação científica marxiana
sobre o valor, enfatizando que a transformação dos valores em preços era um
falso problema. Durante três dias debatemos intensa e duramente entre as
diversas tendências, incluídas algumas diferentes da nossa (Mogiovi,
Foley, Screpanti e outros).
Mas o verdadeiro centro da divergência, na minha opinião,
continua a ser a dialéctica entre a reflexão teórica e
o movimento real.
Houve
ausências significativas neste congresso marxista de Paris?
LV: Por paradoxal que possa parecer, houve uma menor presença das áreas que estão mais implicadas no conflito de classe e nos agitados processos de mudança como na América Latina, Ásia, Europa do Leste ou, por exemplo, na Alemanha. Escassíssimos os estudiosos gregos. Há, claramente, um risco de eurocentrismo.
Como
explica que o nexo entre teoria e prática, entre a reflexão marxista e a
realidade do conflito de classes, se tenha 'amortecido' assim na Europa?
LV: Há que levar em conta que os grandes partidos comunistas desapareceram na Espanha, Itália e França. Neste, o PCF está a voltar-se antes para a socialdemocracia apesar de haver resistências internas. Na Espanha, a experiência da Izquierda Unida está em crise e na Itália temos dois partidos comunistas empatados com um quarto do peso político e eleitoral do velho PCI. Mas na Itália, a inflexão de Bertinotti, que alguns definem como uma nova Bolognina, podemos dizer que foi provocada e que se inscreve precisamente neste enfraquecimento do carácter revolucionários da reflexão marxista na Europa. Não só é o problema do eclectismo como também, por exemplo, da renúncia a questionar os direitos de propriedade ou a eliminação da categoria imperialismo. Estão aplainando o caminho para o keynesianismo, inclusive o radical, como quadro teórico da acção política dos partidos que ainda se chamam comunistas.
Perry Anderson afirmava, já há muitos anos, que o marxismo
ocidental havia perdido, de certo modo, a sua carga revolucionária ao passo que
no Terceiro Mundo esta aumentava. O que há de certo nesta afirmação?
LV: A tese de Perry Anderson mantem a sua actualidade trinta anos depois. O problema não é o Terceiro Mundo e sim a relação entre objectividade e subjectividade que se manifesta concretamente nas situações em que o conflito de classes é mais agudo. Tão pouco é um problema de linguagem.
Também se recorre à linguagem e a categorias
radicais entre os marxistas europeus mas,
frequentemente, põem no mesmo plano terrorismo e resistência. Isso é a demonização da violência independentemente dos contextos no
quais surge o conflito, aceitam os anátemas e as chaves de leitura imperialistas
sobre os 'Estados canalhas'. Tentam constantemente condenar o século XX à
fogueira, mas recorre-se sempre às categorias do século XX para definir a
realidade ou criticar as diversas posições. Na Europa deu-se o comunismo como
fenómeno do século XX e, no melhor dos casos, permanece como horizonte
longínquo da Humanidade. É uma posição determinista que espera a queda do
capitalismo devido às suas contradições implícitas, omitindo o dado decisivo da
subjectividade
que se move nessa direcção. Por isso, à espera de que isto aconteça, retiram-se por trás de um programa
substancialmente reformista apesar da linguagem algo mais radical. Em outras
palavras do mundo a luta pela transformação social coloca-se como alternativa de
sobrevivência para uma parte significativa da Humanidade, na América Latina por exemplo.
Consta que
tu e outros estudiosos marxistas presentes no congresso tiveram de brigar
muito para debater e fazer debater questões como o exemplo de Cuba e dos
movimentos na América Latina. Como foi isso?
LV: É uma consequência directa do que dissemos antes. Quando se torna necessário transferir os problemas da dimensão teórica para a prática, muitos marxistas europeus ficam histéricos. Isto se explica porque não compreendem a importância da Venezuela de Chavez, da resistência de Cuba ao projecto hegemónico estadunidense na América Latina, contrapondo a experiência de Lula às outras experiências importantes naquela área do mundo, ou acusando os movimentos sociais latino-americanos de não compreenderem o processo democrático. Os dois debates que organizámos sobre Cuba e a América Latina tiveram como protagonistas alguns estudiosos 'militantes', como Remy Herrera ou Al Campbell, mas sobretudo latino-americanos como Paulo Nakatami, Leda Paulani, Flavio Bezerra de Farias, Isabel Monal, Elena Alvarez e outros, os quais tiveram uma função decisiva de orientação da discussão sobre os problemas conexos ao conflito de classes e à resistência global.
Na sessão
plenária, em que participaste junto com George Labica,
Samir Amin e Isabel Monal, tu e Samir Amin discutiram
acerca do papel da Europa. Quais foram os pontos de divergência?
LV: Para começar quero dizer que na minha opinião Samir Amin é um estudioso marxista honesto e que o tenho em grande estima. A discussão foi sobre as diferentes análises que fazemos sobre o imperialismo europeu e o estadunidense. Numerosos estudiosos e camaradas consideram a Europa como uma espécie de aliado táctico frente ao inimigo principal representado pelos Estados Unidos. Esta posição tem uma legitimidade própria mas leva a subestimar o processo de constituição do polo imperialista europeu. Muitos pensam que a Europa do século XXI é a mesma do século passado, quando existia o enfrentamento EUA-URSS. Creio poder afirmar que não é assim e que esse processo que esteve sujeito aos Estados Unidos durante mais de meio século já não está e não o estará nem no plano político nem no militar, dois aspectos em que o polo imperialista europeu foram débil. É um debate autêntico que exige um aprofundamento rigoroso. Nossa Rede contribuiu com diversos trabalhos como 'A doce máscara da Europa', 'O plano inclinado do capital', ou 'Eurobang'. É material para alimentar esta discussão, e é de agradecer que estudiosos como Samir Amin, que não compartilham necessariamente os nossos pontos de vista, se debrucem a debater acerca disto.
A tese da
competição global que propuseste, tu e outros marxistas, reformula, actualizando-a, uma análise do imperialismo e da competição
inter-imperialista que foi distorcida ou negada no
debate marxista contemporâneo. Em que se diferencia a vossa tese de, por exemplo a do 'Império' ou a da globalização neoliberal.
LV: Dedicámos um livro para a resposta a essas questões, com James Petras, Mauro Casadio e eu próprio, e está a ser lançado outro intitulado "Competição global", no qual há uma colaboração de Henry Veltmeyer.
O 'Império' supõe, entre outras coisas, que no mundo
contemporâneo o conflito surge entre um capital colectivo
e as multidões, que os estados nação perderam sua
função estratégia e que a Europa é o 'topo' (lugar) democrático para a
transformação social. Nós, pelo contrário, pensamos que a centralidade do
conflito situa-se hoje, mais do que nunca, entre o capital e o trabalho, e que
sectores sociais bem definidos desejam recompor seus interesses dentro de um projecto de mudança radical das relações sociais e das de
propriedade. A tese da competição global afirma que o
Estado-nação não foi superado e sim subsumido no interior dos pólos
imperialistas supranacionais que exercem suas funções e, sobretudo, que já não
nos encontramos perante a presença de um capital colectivo,
como pode ter sido na época da globalização e sim de pólos imperialistas que
competem entre si. Para combater os mecanismos regressivos desta renovada
competição inter-imperialista são decisivos os
movimentos de resistência popular. À competição mundial capitalista é necessário
opor hoje uma resistência global que se desenvolveu sobretudo na América Latina e na Ásia, resistência que pode
influir na prática concreta, não tanto sobre o
terceiromundismo
romântico como sobre a luta política daqui, na Europa. Devemos salvaguardar a
independência destes movimentos de resistência sabendo congregar suas
peculiaridades e os elementos de recomposição mais avançados no terreno anti-imperialismo e da superação do capitalismo.
[*] Professor na Universidade
Transcrito
de: www.resistir.info .